Do CONJUR, Por Pedro Canário:
O Supremo Tribunal Federal acabou de decidir que a proibição da publicação de biografias não autorizadas é inconstitucional. A questão jamais seria um problema se os retratados tivessem a franqueza de um dos ministros que julgou o caso: Marco Aurélio. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o ministro cria uma espécie de autobiografia com interlocutor, traçando a história da passagem de um dos mais importantes e longevos membros do STF.
Marco Aurélio completa exatos 25 anos de Supremo neste sábado (13/6). Conhecido por ser o voto vencido desde quando era ministro do Tribunal Superior do Trabalho, o vice-decano do STF mudou o significado dado a esse fato. Quando ele tomou posse do cargo, os colegas usavam disso para comentar o desempenho do novato. Ficar vencido era sinônimo de que Marco Aurélio era menos preparado que os companheiros de tribunal.
Ele mesmo é quem conta: “Certamente deviam imaginar ‘esse rapaz não entende de nada. Ele está sempre vencido, quase sempre isolado’”.
Hoje, o voto do ministro é aguardado com ansiedade. Pelos colegas, diante da profundidade da lição que virá. Pelos advogados, diante do alento de que a decisão não será unânime e da certeza de que outro caminho é possível.
O momento que marca a mudança de postura dos colegas de corte foi o dia 31 de maio de 2001, quando ele tomou posse como presidente do STF. O ministro Celso de Mello, hoje decano, deixou claro em seu discurso: “Hoje é dia de renovação”.
O ministro Marco Aurélio fala com tranquilidade de si mesmo, dos problemas e resistências que enfrentou – enfrenta – e até dos sérios embates por que passou. Ele conviveu por mais de dez anos com o ministro Moreira Alves, que chegou ao supremo durante a ditadura militar e ficou conhecido por suas posições conservadoras. Justamente o período em que o ministro foi o decano e o Supremo ficaria conhecido como “Corte Moreira Alves”.
Não foram poucas as dificuldades enfrentadas diante da força que representava o ministro Moreira Alves, tanto por seu conhecimento jurídico quanto pela presença sempre marcante do decano em Plenário. Era o grande responsável por “segurar o tribunal”, como lembra Marco Aurélio. [Alguns desses episódios são relembrados na entrevista abaixo.]
Hoje unanimidade na comunidade jurídica, Marco Aurélio chegou ao Supremo com duas marcas indeléveis: a de ser oriundo do TST e a de ser primo do presidente da República que o indicou para o cargo, Fernando Collor. Pior ainda era o fato de que uma das bandeiras de Collor era acabar com o nepotismo na administração pública.
O próprio Marco Aurélio lembra que, na verdade, a conjectura deu a Collor tranquilidade para indicar um parente para cargo tão importante. A Justiça do Trabalho, que estava prestes a completar 50 anos, nunca tivera um representante no Supremo Tribunal Federal. E Marco Aurélio era o candidato apoiado por todos os ministros.
Como Collor quisesse nomear um membro de tribunal superior, consultou o Superior Tribunal de Justiça e o TST sobre quem seriam os candidatos de cada corte – já sabendo que as disputas internas por poder no STJ impediriam um consenso. Dito e feito: a resposta do STJ foi a de que todos os ministros eram candidatos. A do TST, de que Marco Aurélio era o candidato de todos os membros da Justiça do Trabalho. E assim ele foi indicado para a cadeira do ministro Carlos Madeira.
Leia a entrevista:
ConJur — Vinte e cinco anos depois, como o senhor vê o colegiado que encontrou quando tomou posse?
Marco Aurélio — O colegiado daquela época era mais austero no proceder, muito embora também houvesse, àquela altura, esses atrasos no início das sessões. Tanto que eu propus que, em vez de começarmos às 13h30, porque sempre começávamos atrasados, começássemos às 14h. O ministro Moreira Alves, até com picardia, disse: “Hoje você propõe 14h, mas amanhã vai propor 14h30, depois 15h, 15h30, 16h…” Mas de qualquer forma, a ótica do tribunal era mais conservadora.
ConJur — Conservadora em que sentido?
Marco Aurélio — Alguns dizem que a velha guarda segurava um pouco o tribunal. Ou seja, o ministro Moreira Alves, muito apegado a princípios, um grande juiz, um homem superdedicado à causa pública e ao ofício, era mais ortodoxo, segurava o tribunal. Na visão de alguns, mais conservador. Hoje o tribunal é mais solto. E há um detalhe: chegaram temas que são caros à sociedade, que passou a acompanhar com mais atenção, como união homoafetiva, a liberação da marcha da maconha, pesquisas com células-tronco, anencefalia etc. São temas que geram um interesse maior da sociedade. Então o Supremo, ante essas matérias, se projetou e caiu na graça da população. Principalmente com o julgamento da Ação Penal 470 [o processo do mensalão].
ConJur — O que quer dizer quando diz que hoje a corte é mais solta?
Marco Aurélio — Tenho que reconhecer que naquela época, havia uma autocontenção muito grande. O tribunal via com muita preocupação a ultrapassagem de um limite, considerados o Legislativo e o Executivo. Hoje ocorre uma atuação mais espontânea. E em 1988 vem o instrumento, na Constituição, que viabilizou praticamente a atuação do Supremo como se fosse o Congresso. Refiro-me ao Mandado de Injunção, em que o STF, até que seja editada a lei pelo Congresso, pode estipular as condições indispensáveis ao exercício do direito assegurado constitucionalmente. Então, tudo isso colaborou para uma concretude maior da jurisdição no âmbito do Supremo. Além da renovação dos integrantes do tribunal, que foi muito grande.
ConJur — Então hoje o Supremo avança demais? “Esqueceu” essa autocontenção?
Marco Aurélio — Não, não. Há críticas ao Supremo. Mas ele avança quase sempre — claro que ocorre exceção — quando está autorizado. No caso do mandado de injunção, por exemplo. Agora, quando nós atuamos em processo objetivo, nós o fazemos a partir do direito posto pelo Congresso Nacional. Quer ver uma coisa que não compreendo e voto sempre contra? Modulação.
ConJur — A modulação já virou uma crítica histórica do senhor ao tribunal.
Marco Aurélio — A modulação para mim é algo que estimula a edição de leis inconstitucionais e acaba gerando a chamada inconstitucionalidade útil. Sabidamente se tem uma proposta como inconstitucional, mas que se vai adiante porque se sabe, de início, que o Supremo, enfrentando a matéria, e aí se aposta inclusive na morosidade, modulará a declaração de inconstitucionalidade. Como se a Constituição até ali não tivesse vigorado. Isso é muito ruim em termos de avanço cultural. É um verdadeiro retrocesso cultural.
ConJur — Quando começou a história de o senhor ser sempre o voto vencido?
Marco Aurélio — Foi quando ainda não tínhamos a TV Justiça. Certamente deviam imaginar “esse rapaz não entende de nada. Ele está sempre vencido, quase sempre isolado”. Mas fiquei vencido porque tenho, e sempre tive, uma forma de atuar a partir apenas da minha ciência e consciência e da minha formação humanística. E sou muito voluntarioso, como sempre fui, em toda a vida. E não me falta coragem de levantar o dedo e exteriorizar o que penso sobre a matéria em discussão.