Por Ribamar Bessa:
“Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias mais do que os movimentos populares, foi o jornal”. (Machado de Assis, 1859).
“Xerxes e Zulmira leem juntos”.
Esta frase ocupava a última página dos antigos cadernos de caligrafia e era copiada exaustivamente pelos alunos, às vezes como castigo, com o objetivo de treiná-los a escrever, no caso, as letras “x” e “z”. No canto superior da página, a imagem de duas crianças sentadas com um livro aberto.
Embora máquinas de datilografia já fossem usadas desde o final do século XIX, não existia, em 1905, uma só máquina de escrever em toda a região do rio Uraricuera (Roraima). Mas havia um grito sufocado, louco para se libertar, além de dois malucos viciados em notícia e em fofoca. Eles decidiram editar um jornal – O CANIÇO – totalmente manuscrito com letras caprichosamente desenhadas sobre quatro folhas de papel almaço.
Quem desenhou no início do século XX aquelas letras firmes e redondas, com caneta-tinteiro, com certeza era algum alumno que aprendera a escrever nos cadernos de calligraphia. A prova estava no rabinho arrebitado do cedilha na palavra “caniço”, naquele “x” de pontas encaracoladas tipo cabelinho ondulado da Julia Roberts em Uma Linda Mulher e em todas as letras padronizadas, que mais pareciam carimbos.
O CANIÇO, quinzenal, era o jornal de maior tiragem em toda a terra de Macunaíma: 50 exemplares, o que exigia que fosse todo ele copiado manualmente, cada quinze dias, pelo seu redator-chefe, um tal de Passarinho, e pelo seu único repórter, um cidadão de nome J. Justo, que faziam justiça com as próprias mãos.
Regatão de notícias
Os jornalistas Passarinho e J. Justo, além de apurarem as novidades e de capricharem na caligrafia para divulgá-las, eram também jornaleiros e regatões de notícias, remando suas canoas, varando pelos furos e cachoeiras dos rios Tacutu, Auaris, Amajari e Parimé, acompanhando a trajetória percorrida pelo herói sem nenhum caráter. A realidade botava no chinelo a fantasia do próprio Mário de Andrade,
Gutenberg que nos perdoe, mas O CANIÇO manuscrito era mais legível do que muita imprensa furreca. Editado no meio da selva, diagramado em duas colunas por página, letra firme e traço forte, pescou em águas turvas pelo menos durante dois anos, que foi seu tempo de vida, embora não tenha conseguido manter sempre a periodicidade.
Um exemplar do Caniço chegou até nós. O nº10 de 1907 foi localizado na hemeroteca do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) nas aulas de Jornalismo Comparado que ministramos, em 1978, no curso de comunicação social da Universidade do Amazonas. O registro consta no livro “Cem anos de Imprensa no Amazonas: 1851-1950 – Catálogo de Jornais” que organizamos depois com alunos do curso de graduação em História, publicado em primeira edição (1987) pela Editora Ana Cássia Ltda e, numa segunda edição (1990), pela Editora Umberto Calderaro Ltda.
O CANIÇO é um dos 620 títulos de jornais catalogados que circularam no Amazonas no período de um século. O jornal de Uraricuera não foi, no entanto, uma aventura solitária. O catálogo pescou pelo menos 20 periódicos manuscritos que circularam em diferentes municípios, incluindo Manaus. Com títulos inventivos, eles brotaram, curiosamente, por blocos, em momentos diferentes: 1882, 1889 e 1905-1907.
Três jornais manuscritos surgiram em Manaus, em 1882, todos no mês de agosto: ESTUDANTE, semanário redigido por Mário Nery, Augusto Menezes e Bráulio Pinto; APOLLO, escrito por Britto Inglez e J.B. Faria e Souza e SCIENCIA, que teve vida brevíssima com um único número, aos contrário dos dois primeiros que tiveram quatro números cada um.
Xerxes e Zulmira
Na entressafra, surgiu PENSAMENTO que viveu o tempo que vivem as rosas: o espaço de uma manhã de 15 de dezembro de 1886. Depois disso, O PENSAMENTO nunca mais brotaria da mesma forma em Manaus.
Maio, mês das flores. Em maio de 1889, o vírus dos jornais manuscritos se propagou e dez deles floresceram no Amazonas, alguns deles chegando a editar até seis números antes de morrer, todos eles com letra desenhada de caderno de caligrafia: CORSÁRIO, ESPIÃO, GAZETA LITERÁRIA, LEÃO, LOBO, LUNETA, MOLEQUE, SALTIMBANCO, MALUCO E PAPAGAIO. Podemos supor que existiram dezenas de outros que foram apagados da memória e não figuram nos arquivos.
A última safra produziu alguns jornais manuscritos em Manaus – O ESCOVA (1905), O ÓCIO (1906) e O SPORT (1907) – e outros em Rio Branco (atual Roraima) – A ESCOVA(1907) e o TACUTU.
A democratização da máquina de escrever, inicialmente, e depois a industrialização com o desenvolvimento de impressoras rotativas acabaram liquidando os jornais manuscritos, sepultando assim as letras desenhadas dos cadernos de caligrafia. Os jornais artesanais que surgiram posteriormente, como O COLLETE (1915), O CRÍTICO (1925) e O COMBATE (1946) já eram datilografados. Nunca mais Xerxes e Zulmira leriam juntos jornais manuscritos. Para falar a verdade, nem separados. De qualquer forma, indago se, afinal, é ou não importante saber o que os dois liam juntos?
P.S. – Organizei o Catálogo de Jornais em 1984 com os então alunos de graduação do curso de história da UFAM, de quem eu era professor: Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, Vânia Tadros, Luiz Bitton, Francisco Jorge dos Santos e Patrícia Sampaio. O trabalho foi feito a partir do levantamento inicial que realizamos, em 1978, na hemeroteca do IGHA durante as aulas de Jornalismo Comparado da UFAM, que eram lá ministradas aos alunos, cujos nomes faço questão de aqui nominar: Adeice Torre, Alice Valle da Costa, Ana Maria Pina (hoje Paiva), Ângela Abreu, Antonio Braga, Circe Alves, Conceição Derzi, Eduardo Monteiro de Paula, Eliana Ribeiro, Etra Lúcia Batista, Flávio Cohen, Idalina Lasmar, Inácio Oliveira, Izabel Melo, Izane Torres, Jorge Marques, Josely Moreira Ribeiro, Maísa Vilhena, Maria de Fátima Sampaio, Maria de Jesus Martins, Maria do Socorro Oliveira, Maria José Azevedo, Orlene Marques, Otoni Mesquita, Regina Helena Magnoni, Roberta Silva, Roselane Galvão, Wandler Cunha. Posteriormente, os historiadores Luís Balkar Pinheiro e Maria Luiza Ugarte Pinheiro do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas (LHIA – UFAM) dariam continuidade ao trabalho, com a publicação de “Imprensa Operária no Amazonas” (2004) e “Folhas do Norte – Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920), além de orientarem várias dissertações sobre o tema. Geraldo Pinheiro avançaria com a brilhante tese de doutorado (2011) “Imprensa, política e etnicidade: portugueses letrados na Amazônia (1885-1936).
Outros jornais foram localizados nos arquivos pela historiadora Luiza Ugarte Pinheiro com nomes sugestivos como A Farpa, O Coió, A Lanceta, A Marreta, Matraca, Pimenta, Tezoura, Cricri, O Chicote, O Esfola, Martello, O Pau, O Mucuim, O Perequeté, KCT. Luiza registrou jornais manuscritos femininos como o que circulou em Codajás – Borboleta – cujo primeiro número data de 11 de abril de 1909. Outros títulos se acrescentam à lista como o “Amôr – mimoso jornalzinho das alumnas da nossa Escola Normal”, fundado em 1909, que conseguiu se manter por mais de um ano.
Links para outras cronicas de história da imprensa no Amazonas.
1. A MULHER NOS JORNAIS DO AMAZONAS: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1132-a-mulher-nos-jornais-do-amazonasquem-era-a-ia
2. AS CONFEITARIAS DO GOVERNO – http://www.taquiprati.com.br/cronica/1093-as-confeitarias-do-governo
3.O COLECIONADOR DE JORNAIS – http://www.taquiprati.com.br/cronica/986-o-colecionador-de-jornais
4. BAÚ VELHO: UM MUSEU DO FUTEBOL – http://www.taquiprati.com.br/cronica/1045-bau-velho-um-museu-do-futebol
5. OTTO MARIA E A ENTREVISTA INVENTADA http://www.taquiprati.com.br/cronica/293-otto-maria-e-a-entrevista-inventada