INDIO FALOU, TÁ FALADO

Por Ribamar Bessa:
A prova está no dicionário: dos 228 mil verbetes que o Houaiss apresenta em uma de suas edições, cerca de 45 mil são palavras emprestadas de línguas indígenas. Alguma dúvida de que o conhecimento dessa herança linguística é necessário para entender o português que falamos, e até mesmo para consolidar a nossa identidade?
 “Há várias línguas faladas em português”, afirma José Saramago no documentário Língua: vidas em português. Basta olhar as variedades regionais para dar razão ao escritor. Como explicar tal diversidade? Parte dela reside no fato de que os índios que aqui moravam falavam centenas de línguas autóctones diferentes e quando começaram a usar um idioma que veio de fora – o português – nele deixaram impressas suas marcas, fruto de uma relação que a sociolinguística denomina de “línguas em contato”. Como as línguas indígenas eram diferentes em cada região, as marcas que deixaram não foram as mesmas.
No início do século XVI, o poeta Sá de Miranda lançou aos mares do futuro a nau da língua portuguesa, vinculando seu destino à expansão do comércio marítimo. Durante um par de séculos, o português passou a ser falado na Índia, na Malásia, na Pérsia, na Turquia, na África, no Japão e até na China e na Cochinchina. Tornou-se “língua franca”, isto é, um idioma usado para comunicação entre pessoas cujas línguas maternas são diferentes – como ocorre hoje com o inglês.
A língua portuguesa já veio para cá marcada por outras línguas com as quais havia convivido. Aqui, no território que é hoje o Brasil, encontrou mais de 1.300 línguas, faladas por cerca de 10 milhões de habitantes, segundo estimativas de pesquisadores da Escola de Berkeley que estudaram demografia histórica e consideram que ocorreu  no continente americano “a maior catástrofe demográfica da história da humanidade”. Índios foram assassinados porque o colonizador queria ocupar suas terras e explorar sua força de trabalho.
As duas línguas gerais indígenas faladas no Grão-Pará e no Brasil – a Língua Geral Amazônica (LGA) e a Língua Geral Paulista (LGP) – nomearam conceitos, funções e utensílios novos trazidos pelos europeus com adaptações fonéticas e fonológicas: cavalo (cauarú), cruz (curusá), soldado (surára), calça ou ceroula (cerura), livro (libru ou ribru), papel (papéra), amigo ou camarada (camarára).
Os portugueses começaram a falar essas duas línguas  e também tomaram delas muitos empréstimos, hoje usados pelos brasileiros, que nem desconfiam de sua origem. Desde o século XVI, os portugueses, que tinham interesse econômico em comunicar-se com os índios, começaram a usar uma língua de base tupi que se tornou a Língua Geral. Os missionários fizeram então uma gramática, explicando como funcionava essa língua e passaram a usá-la na catequese. Traduziram para ela orações, hinos e até peças de teatro. Essa e outras línguas legaram uma herança ao português.
De origem tupi é a palavra carioca, nome de um rio que, segundo alguns especialistas, significa “morada(oca)do acari”, um peixe que cava buracos na lama e ali mora como se fosse um anfíbio. Para outros, é o nome de uma aldeia, a “morada dos índios carijó”. Da mesma origem são os nomes de muitos lugares, como locais atuais do Rio de Janeiro que conservaram as denominações de antigas aldeias: Guanabara (baía semelhante a um rio), Niterói (baía sinuosa), Iguaçu (rio grande), Pavuna(lugar atoladiço),Irajá (cuia de mel), Icaraí(água clara) e tantos outros, como Ipanema, Sepetiba, Mangaratiba, Acari, Itaguaí.
Mas muitos topônimos indígenas adquiriram novos sentidos ou perderam seu sentido original. Os tupinambás denominaram de Itaorna uma área em Angra dos Reis, onde na década de 1970 foi construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, cujo  solo minado por águas pluviais provocou deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar. Somente em fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia que mede a contaminação do ar na região, descobriram o que significa itaorna: “pedra podre”.
A influência das línguas indígenas nas variedades usadas no Brasil não se resume a uma listagem de palavras exóticas ou “folclóricas”. Além do léxico, existem outras influências entranhadas nas camadas profundas da língua, que penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de “substrato”.
No caso da fala individual, o substrato é o conjunto de transferências adquiridas pela primeira língua, ou língua materna, depois do contato com uma segunda língua. Do ponto de vista coletivo, o substrato é o conjunto de vestígios que uma língua, quase sempre extinta, deixa sobre outra língua, em geral a de um povo invasor. É a influência da língua perdida sobre a língua imposta, que só se estabiliza após diversas gerações. Exemplos disto são alguns processos de modalização do nome, característicos do tupi, que deixaram suas marcas no português não pela via do empréstimo cristalizado, mas pelo próprio mecanismo. Tanto na palavra netarana, usada no Pará, quanto em outras do português regional, como sagarana, canarana, cajarana, tatarana, há o uso do sufixo tupi rana (“como se fosse”).
Essas influências ainda não foram completamente inventariadas, embora algumas tenham sido identificadas. O indigenista Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti, que era então falada no sertão de Botucatu (SP). Descobriu que aquela língua, do tronco Jê, possui sons que os grupos de língua tupi não tem, como o r retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o português quando adquiriram a nova língua. Ele ali permanece até hoje no r paulista, conhecido como r caipira. A atriz Vera Holtz sabe disso.
No interior do Amazonas, no rio Madeira, há o processo de “alçamento” e “abaixamento” de vogais, “Alçamento” é o fechamento vocálico, visível em casos como “popa da canoa”, que se pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato de língua indígena.
Nem sempre tais mudanças, consagradas pelo uso, foram aceitas pelos puristas da língua. Da mesma forma que o Império Romano considerou como “línguas estropiadas” as variedades do latim faladas na Península Ibérica (que deram origem ao português, ao espanhol, ao catalão, ao galego, ao mirandês), assim também os portugueses consideraram a variedade aqui falada como “língua mutilada”.
No Sermão do Ano Bom, em 1642, o jesuíta Antonio Vieira, que viveu no Grão Pará, afirmou que “A língua portuguesa (…) tem avesso e direito; o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais”. Classificou as variedades locais do português de “meias línguas, porque eram meio políticas [civilizadas] e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras nações que as pronunciavam, ou mastigavam a seu modo”.
Uma resposta a Vieira está na letra da canção “Língua”, de Caetano Veloso: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / (…) E deixe os Portugais morrerem à míngua / ‘Minha pátria é minha língua’/ Fala Mangueira! Fala! / Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó/ O que quer / O que pode esta língua?/ (…) Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas”.
As línguas indígenas permanecem no substrato do português e guardam informações e saberes, funcionando como uma espécie de arquivo. Conhecer a contribuição efetiva que legaram à língua portuguesa é entender como viviam os povos que as falavam e se apropriar dessa experiência milenar.
P.S. – Solidariedade irrestrita aos familiares e amigos das três pessoas assassinadas em dezembro de 2013, cujos corpos foram encontrados na área indígena Tenharim no sul do Amazonas. No entanto, não podemos permitir que sentimentos tão profundos como a dor, o luto e a tristeza pela perda de entes queridos sejam manipulados para destilar ódio, preconceito racial e violência boçal contra os índios, como pretendem alguns discursos que circulam nas redes sociais.
Esse tipo de discurso tem alimentado o genocídio que em cinco séculos trucidou centenas de milhares de índios. Nossa solidariedade às três pessoas assassinadas só adquire legitimidade se ela se estende à tragédia vivida pelos povos indígenas da Amazônia. Entendendo que uma forma de combater o preconceito é conhecer o outro, apresentamos aqui versão do artigo que publicamos na Revista de História da Biblioteca Nacional (n° 100, jan. 2014).