Por Ribamar Bessa:
“Uma língua é um dialeto que tem Exército, Marinha e Aeronáutica”. R.A.Hall
1. Oaxaca, México. Uma mulher de 28 anos, Irma López Aurélio, cuja língua materna é o mazateca, sentindo dores de parto, procurou um hospital, que se recusou atendê-la. Ela saiu e teve o filho ali mesmo no meio da rua, em frente da Maternidade. A cena foi filmada. Médicos e enfermeiras juram que só lhe negaram o atendimento porque não entenderam a língua que ela falou. Isso foi em 2013. Agora Sabino, seu filho, completou dois anos e provavelmente, devido ao trauma, não herdará a língua da mãe. Está aprendendo espanhol. Na rua.
2. São Joaquim, Califórnia (EEUU). Uma bisavó de 81 anos, Marie Wilcox, aprendeu a usar o computador só para fazer um dicionário em Wukchumi, sua língua materna, que já foi falada outrora por 50 mil pessoas. Nos últimos sete anos, ela salvou nos arquivos milhares de palavras, que lhe ajudam a dar aulas com sua filha Jennifer, para seus bisnetos e outras crianças da comunidade que tem 200 moradores. “Ninguém parece querer aprender a minha língua. Tudo vai se perder qualquer dia desses, não sei” – ela disse no documentário “Marie’s Dictionary” disponível no Youtube.
3. Barra do Bugres (MT). Aqui vivem 600 índios Umutina, quase todos bilíngues. O último monolíngue em umutina-balatiponé morreu em 2004. Foi ai que Luciano Ariabo Quezo, hoje com 25 anos, observou que o português estava “engolindo” sua língua materna. Decidiu resistir. Buscou a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), interior paulista, onde cursa o último ano de Letras. Com bolsa da FAPESP, escreveu o livro bilíngue – “Língua e Cultura Indígena Umutina no Ensino Fundamental” para alunos das séries iniciais das duas escolas existentes na área.
4. Alto Solimões (AM). Os Ticuna da fronteira do Trapézio amazônico tiveram seu território decepado por estados nacionais. Agora, 46.045 vivem no Brasil, 8.000 na Colômbia e 7.000 no Peru. Muitos falam três línguas: ticuna, português e espanhol. Os que hoje são universitários denunciam que a vida na escola foi um inferno: “Quando eu lia em português, os colegas mangavam de mim, falavam que eu era uma Ticuna que não sabia falar” – disse uma delas. “Sofri discriminação por não falar bem o português” – se queixou outro aluno.
Os exemplos podem se multiplicar, pois das cerca de 6 mil línguas faladas no planeta, mais de 5 mil que não tem Exército, Marinha e Aeronáutica são discriminadas, estão em perigo de extinção, perdendo falantes em detrimento das línguas consideradas “de prestígio”. Com elas desaparecem cantos, poesia, narrativas, rituais, saberes, formas diferentes de ver, pensar, categorizar e intervir no mundo.
Glotopolítica
O destino dessas e de outras línguas depende, em grande medida, das políticas de línguas, tema do I Simpósio de Glotopolítica e Integração Regional realizado em João Pessoa (18 ao 20/11) pelo Núcleo de Estudos em Política e Educação Linguística e pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba. Além das línguas indígenas, o evento teve vários outros eixos temáticos: expansão do espanhol e do português, ensino, gestão e legislação de línguas, formação docente, nacionalismo, imperialismo e integração ao Mercosul.
Pesquisadores renomados de diferentes universidades e de vários países, especialmente do Mercosul – tinha hermanos por tudo que é lado – participaram de mesas sobre diversidade de línguas, direitos linguísticos e reivindicações dos falantes de línguas hoje minoritárias que lutam pela sobrevivência dentro dos estados nacionais. Entre outros, Elvira Arnoux, Adrian Fanjul, Maite Celada, Daniela Lauria, Lia Varela, Pablo Gasparini, Marcos Bagno, Xoan Lagares, Fernanda Castelano, Leandro Diniz, Luciana Freitas, Dayala Vargens.
Vários Grupos de Trabalho realizaram sessões com apresentações de pesquisas em andamento, discutindo os diferentes tipos de bilinguismo, o reconhecimento e a democratização do uso das línguas, as demandas por políticas de línguas que levem em conta os interesses das comunidades, o ensino de línguas estrangeiras, os cenários regionais, nacionais e globais do ensino de línguas, a oferta da língua espanhola na educação básica no Brasil, os materiais didáticos, o currículo e a situação das línguas que estão em contato permanente através de seus falantes.
As comunicações apresentadas em um dos grupos que tive a oportunidade de assistir, coordenado por Cristina Broglia (UFSCar), discutiram a diversidade linguística e as questões étnicas, regionais, culturais, de fronteira, ampliando o conceito de “línguas brasileiras” que são todas aquelas usadas por comunidades que aqui vivem: línguas indígenas, de imigração, de quilombolas e as línguas de sinais.
“O português como língua indígena: a experiência dos Xokó” foi o tema exposto por Beto Viana, da Universidade Federal de Sergipe, no mesmo grupo em que mestrandos e doutorandos discutiram “A imposição da língua portuguesa aos Ticuna do Amazonas” (Ligiane Pessoa e Ricardo Diego), “Políticas e ideologias linguísticas em uma comunidade de imigrantes holandeses em Arapoti-Paraná” (Ályda Zomer), “O português afro-indígena de Jurussaca, no Pará” (Dalva Del Vigna) e “O processo de revitalização de línguas minoritárias: o caso Potiguara” (Aldenor Rodrigues).
O lugar que ocupam as línguas oficiais e as questões didáticas envolvidas no seu ensino, assim como os discursos que sobre elas circulam no espaço escolar em função da legislação, são temas de publicações lançadas no evento, entre os quais “Políticas Linguísticas declaradas, praticadas e percebidas” de Socorro Cláudia Sousa e Pilar Roca, “Gramática Brasileña para hablantes de español” de Orlene Lúcia e Marcos Bagno, “Espanhol e português brasileiro: estudos comparados” de Adrian Fanjul e Neide Gonzalez (orgs), “Del español y el portugués: lenguas, discurso y enseñanza” de Elvira Arnoux e Pilar Roca e “Letras e letramentos: escrita situada, identidade e trabalho docente no estágio supervisionado” de Carla Reichmann.
A busca de uma identidade nacional ou a integração a uma determinada região não ficam comprometidas com o reconhecimento das línguas minorizadas e desarmadas e da diversidade das línguas oficiais. As políticas de línguas e os agentes encarregados de sua execução devem zelar pela integridade e pelo respeito à diversidade, aplicando o princípio proposto por Boaventura de Souza Santos: “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”.
P.S. – Alunos de graduação e pós-graduação da UFPB fizeram parte da equipe de colaboradores que garantiu a realização do evento organizado por docentes da UFPB: Andrea Silva Pontes, Josete Lucena, Pilar Roca, Socorro Cláudia de Sousa, entre outros.