Por Everardo Maciel
Tributos, além de sua precípua finalidade arrecadatória, podem ser utilizados como instrumento de intervenção severa na vida das pessoas e das empresas, visando alterar parâmetros sociais ou econômicos, ou modificar condutas e hábitos.
Essa função excepcional dos tributos integra o domínio da extrafiscalidade, cujo exercício presume a existência de circunstâncias especiais, sob pena de ser ineficaz ou contraproducente.
A extrafiscalidade se sujeita a restrições, porque incide diretamente na liberdade de pessoas. Por isso, como preveem as legislações tributárias, resta subordinada às limitações ao poder de tributar.
Um bom exemplo de extrafiscalidade é a utilização de tributos para correção de desigualdades de renda.
Esse uso parece muito razoável, porém exageros na incidência podem ser fatais, mormente quando se considera a grande flexibilidade dos contribuintes, em contexto de globalização, para fixação dos respectivos domicílios fiscais.
Gérard Depardieu, seguramente o maior ícone do cinema francês, trocou, em 2012, seu domicílio fiscal para a Rússia, como reação ao exagerado aumento de carga tributária sobre as faixas de renda mais altas, levado a cabo pelo Presidente socialista François Hollande. Dois revezes: perda de arrecadação e humilhação para a França.
Esse episódio é muito mais comum do que se imagina e se agrava quando, por arrogância ou ingenuidade, governos encampam a extrafiscalidade abusiva. Nem mel, nem cabaça; nem arrecada, nem dá curso à pretensão de justiça social.
Desde o século XVII, cuidou-se de gerir condutas por meio de tributos, sem desprezar obviamente o enorme potencial arrecadatório de certas modalidades de consumo.
Os alvos preferenciais eram o jogo, o tabaco e a bebida. Eram tributados pesadamente no âmbito do que se denominou “impostos do pecado” (sin taxes, em inglês), com evidente inspiração em fundamentalismo religioso.
O pagamento de impostos, de acordo com esse peculiar entendimento, redimiria o pecador. Uma pérola do cinismo tributário.
David Hume (1711-1776), notável pensador escocês, aperfeiçoava a tese, ressaltando a natureza voluntária desse consumo, o que legitimaria sua tributação. Mas advertia que a frugalidade e sobriedade desejadas só se alcançariam se os impostos fossem “judiciosamente lançados”.
A política tributária abandonou a motivação, mas não abdicou da tributação gravosa daquelas bases tributárias, às quais se somaram outras, eleitas pelo critério de seletividade, que considera, na determinação das alíquotas, a importância relativa do consumo para o cidadão e para a sociedade.
Assim é que, hoje, bebidas alcoólicas e tabaco, entre outros produtos de consumo qualificados como supérfluos, têm, em todos os países, uma tributação desproporcionalmente alta.
Nessas circunstâncias, é imperioso retomar a advertência de Hume quanto à temperança na utilização da extrafiscalidade como indutor de condutas, porque sempre há a tentação do excesso.
Como imposto não cura vícios, se a tributação for excessiva o consumidor vai buscar sempre uma boa combinação de prazer e preço. É aí que entra o comércio ilegal.
O crime é oportunista. Se há possibilidade de ganhar muito dinheiro sem pagar impostos, corre-se o risco. O que conta, afinal, é o lucro advindo da atividade.
Por mais virtuosas que sejam as intenções, estressar preços, quer pela forma de incidência, quer pelo excesso de carga tributária, faz apenas o jogo do criminoso.
No Brasil, o denominado contrabando de cigarros é ostensivo. Conhecem-se as marcas, sabe-se a origem. Tudo às claras.
O mais grave é que ele se associa a outras modalidades de crime, como narcotráfico, tráfico de armas, etc. O criminoso não tem preconceitos, nem escrúpulos.
Se o modelo estiver errado, não haverá ação repressora eficaz, por mais meritória e indispensável que seja. O military approach, no caso, não terá sucesso.
No templo de Delfos, em Éfesos, uma frase resumia todo pensamento helênico: “nada em excesso”. Imposto, também, pode fazer mal à saúde.
– Foi Secretário da Receita Federal por 8 anos.