Animal foi usado em propaganda da Receita em 1979. Nas entrelinhas, publicitário queria criticar a ditadura.
Eu entrei na Receita Federal no concurso de 1976 e vivi o “nascimento” do Leão, cujo pai foi Dr. Dorneles (hoje vice-governador do Rio de Janeiro), um competente e elétrico secretário da Receita. E depois, também vivi a tentativa de reinventá-lo como um “gatinho angorá”, que não deu certo.
Hoje, já aposentado, vejo que mais do que nunca o Leão representa o Estado brasileiro na sua relação com o contribuinte, atônito e indefeso por conta da parafernália cada vez mais complexa do nosso sistema tributário, um verdadeiro manicômio no dizer de Alfredo Becker.
A matéria a seguir retrata fielmente aqueles momentos.
Serafim Corrêa
RIO – (O GLOBO) – “O Leão é manso, mas não é bobo”. Essa era a mensagem que a Receita Federal queria passar sobre o Imposto de Renda quando encomendou, em 1979, a primeira campanha sobre a arrecadação obrigatória. O que não se imaginava naquela época é que a imagem do Leão perduraria até os dias atuais como símbolo do IR.
“Vivíamos sob a ditadura e o Neil (Neil Ferreira, um dos criadores da propaganda) era muito ideológico. Ele criou o leão porque queria retratar o Estado como feroz”.
A ação consistia em uma série de propagandas televisionadas que mostravam um leão em diversas situações: sendo domado em um circo, entrando tranquilamente na casa de uma família ou dando uma declaração a um repórter. Criados por Neil Ferreira e José Zaragoza, da agência DPZ – atual DPZ&T –, os comerciais foram veiculados pela primeira vez em 1980. Os dois faleceram no ano passado.
De acordo com a Receita, o objetivo das propagandas era mostrar que, apesar de ser o rei dos animais, o leão não ataca sem avisar: “é justo; é leal; é manso, mas não é bobo”. Esse é justamente o mérito da campanha, defende o publicitário Lula Vieira.
— O maior mérito dessa campanha talvez tenha sido transformar uma coisa terrível, que era o Imposto de Renda, em um animal mais ou menos simpático. Para a época, foi uma propaganda ousadíssima. A DPZ partiu brilhantemente para uma metáfora: quando o leão não é ameaçado, não há perigo. Essa é a arte da propaganda. Ela dá a mensagem de maneira sutil e as pessoas entendem o que precisam fazer, mesmo que não seja de forma consciente — avalia.
TRÊS ATIRADORES NA FILMAGEM
Já o publicitário Roberto Duailibi, cofundador da agência e responsável por vender a ideia ao Fisco, afirma que a ideia original não era exatamente essa.
— Ainda vivíamos sob o regime da ditadura e o Neil, principalmente, era muito ideológico. Ele criou o leão porque queria retratar o Estado como feroz, voraz. Fiquei até bem espantado quando ouvi, mas comprei a ideia. Não imaginava que o governo fosse aceitá-la — conta ele, lembrando ainda as dificuldades para filmar um leão — Foi bem complicado. O ministro da Fazenda na época, Karlos Rischbieter, tinha de medo de alguém morrer, porque pegaria muito mal para o governo. Por isso, ele ordenou que tivéssemos uma equipe de três atiradores, caso o leão saísse do controle e as filmagens foram realizadas dentro de jaulas.
‘O LEÃO ERA EU’
Outro ator que teve papel importante na escolha do leão foi Francisco Dornelles. À época, ocupando cargo de secretário da Receita, ele foi uma das vozes que defendeu a escolha do animal como demonstração da força do governo.
— As pessoas não pagam imposto porque querem. Uma pitada de medo foi fundamental para que elas entendessem e o leão fez isso — disse o vice-governador.
Dornelles contou ainda que ele virou a personificação do rei da selva.
— O Leão era eu. Como eu respondia pela Receita, as pessoas me viam no meio da rua e começavam a gritar: “Olha o leão!”. Uma vez, estava no escritório do meu tio,Tancredo (Neves), quando o deputado Fernando Santana disse que eu parecia muito o garoto do leão. Ficou abismado quando meu tio disse que era o próprio! Lembro que ele disse: “Nunca imaginei que o sobrinho do Tancredo, da oposição, seria o Leão do Figueiredo” — conta, rindo.
SARNEY QUERIA TRANSFORMAR O LEÃO EM GATINHO
Após o processo de redemocratização do país, o então presidente José Sarney tentou reconfigurar a imagem do governo, transformando o leão em um gatinho. A ideia, porém, não foi bem recebida.
— O Zaragoza se recusou a fazer qualquer produto visual com um gato. Chegaram a existir propagandas com o gato, mas só por escrito. A ideia não era boa. Não foi à toa que não pegou — conta Duailibi.
Atualmente, a Receita não utiliza mais o Leão como estratégia. A única referência do órgão é o “Leãozinho”, site infantil de educação fiscal e tributária. De acordo com Antonio Henrique Lindemberg, coordenador geral de atendimento, o rei da selva virou um mascote.
— De lá pra cá, o leão deixou de ser usado com esse caráter de força, a Receita quis desconstruir essa imagem. Hoje, ele se tornou a maneira mais lúdica e pedagógica de nos comunicarmos com as crianças. Quase um mascote.