Por Cristóvam Buarque
Depois de assumirmos compromissos para fazer PAC 1 e 2, COPA e Olimpíadas, reajustes de mais de 61% nos salários dos 50 mil parlamentares do Brasil, do presidente, dos ministros, governadores prefeitos, além de seus secretários, o governo apresenta um reajuste de apenas 6,8% para o salário mínimo, de R$ 510,00, para R$ 545,00 e um corte de gastos no valor de R$ 50 bilhões no orçamento de 2011. Tudo isto porque os gastos públicos provocados pelo salário mínimo e pela saúde, educação e esporte podem trazer aumento nos preços, trazendo de volta a famigerada inflação.
Depois de aumentar os salários dos parlamentares e dirigentes do país em mais de 61%, a Câmara já aprovou e o Senado votará se aceita ou não o aumento de salário mínimo de R$ 510,00 para R$ 545,00, R$ 560,00, ou R$ 580,00, o que corresponderá, respectivamente, a um aumento de 1, ou 1,5 ou 2 pães (franceses) por dia para cada integrante da típica família brasileira, na qual o chefe da família ganha um salário mínimo.
É contra o aumento de um a dois pães por dia (para o cidadão de uma família cuja renda formal é de cerca de um salário mínimo) que as centrais sindicais e a oposição no Congresso estão levantando suas bandeiras. Não se insurgem contra a COPA, os PACs, as Olimpíadas, nem contra o aumento de salários dos parlamentares, ministros, governadores, prefeitos e do presidente.
É triste, mas a guerra política brasileira limita seu radicalismo ao número de pães a mais por dia para o trabalhador. E o mais grave é que deixamos o Brasil entrar em uma crise entre a aritmética e a moral.
Do ponto de vista da aritmética, de fato, cada R$ 1,00 a mais no imposto de renda significa um acréscimo de bilhões de reais no orçamento público, pelo impacto sobre a previdência no nível federal e sobre os custos operacionais de algumas prefeituras. Este acréscimo pode significar um aumento na taxa de inflação que ao chegar a 6% ao ano, já dá sinais de estar perto do descontrole. E sabe-se que, em conseqüência, serão os pobres os grandes perdedores, além do custo nacional de desarticulação do tecido social e econômico, como aqueles com mais de 35 anos lembram muito bem.
A luta pela estabilidade monetária exige um grande acordo nacional. A volta da inflação tem na economia conseqüência do tipo da volta de ditadura no Brasil. No Egito, milhões se mobilizaram para se livrar de um tirano. No Brasil, precisamos nos mobilizar para evitar que volte uma tirana: a inflação. Isto pode explicar porque o governo federal se agarra a um salário mínimo ridículo de R$ 545, contra os ridículos R$ 580,00 dos “radicais” e que esteja tomando medidas duras para cortar R$ 50 bilhões dos gastos previstos para 2011.
Esta é a força da aritmética. Mas ela precisa ser casada com a força da ética. Caso contrário, o governo estará tomando uma medida que não contará com o apoio popular.
Este casamento exige justificativas morais para as decisões aritméticas que limitam o salário mínimo e impõe corte nos gastos que pesarão sobre o orçamento das famílias pobres e sobre o orçamento de serviços essenciais, sobre a esperança de concurseiros, sobre a necessidade de investimentos em infra-estrutura econômica e social. Os governantes estaduais, e não somente o Executivo Federal, precisam explicar:
De onde surgiu esta necessidade de cortes em 2011, se até outubro de 2010 o Brasil era apresentado como o paraíso das contas públicas. O país precisa saber quem mentiu, manipulou ou tomou medidas irresponsáveis com as contas públicas.
Os cortes não podem ser decididos sem um debate cuidadoso pelo Congresso, mas, sim, com audiências públicas para saber os efeitos de cada corte sobre as diversas parcelas da sociedade e sobre o futuro da Nação.
Será imoral aprovar os cortes e reprimir aumento do salário mínimo, mantendo os aumentos dados no ano passado, especialmente aos parlamentares de todo o Brasil, aos ministros e secretários de estado e de municípios.
Se não é possível aumentar o salário mínimo para além destes ridículos valores de R$ 540,00 ou R$ 580,00 o governo precisa apresentar um programa de compensação, uma espécie de PAC para Complementação do Salário Mínimo, que ofereça serviços públicos na saúde, na compra de remédios, no tempo gasto dentro de um ônibus, na educação dos filhos, que elevem o bem-estar dos trabalhadores, mesmo com pequeno aumento direto no seu contracheque.
Sem estas medidas, a aritmética se chocará com a moral. Será uma aritmética sem vergonha. Estaremos aprovando medidas e valores sem legitimidade popular, fazendo aqui o que os ditadores estão deixando de fazer no exterior, graças às mobilizações populares.
É tempo de salvar a estabilidade do Real, condição básica para o bem-estar do trabalhador. Mas não peçamos sacrifícios apenas aos que recebem salário mínimo, nem imponhamos os cortes sem convencer a população, sem darmos exemplos de que é preciso sacrifício e que ele seja compartido por todos, sem pesar apenas nos ombros dos mais pobres, como o Brasil vem fazendo desde que Cabral chegou por aqui escravizando os índios e os africanos, que viviam em condições materiais não muito piores do que oferece hoje um salário mínimo, mesmo de R$ 580,00 que tanto satisfaz aos “radicais” brasileiros de 510 anos depois.
Se transformarmos o salário mínimo em uma guerra de pães, e fizermos os cortes de gastos apenas sobre quem não tem poder de reagir, sem tocar nos privilégios, estaremos escolhendo a aritmética contra a ética. Fazendo uma aritmética sem vergonha.
Cristóvam Buarque é senador pelo PDT do Distrito Federal. O artigo foi publicado originalmente nos jornais DESTAK (Rio, SP e Brasília), Jornal do Comércio (PE), Gazeta do Povo (PR) e O Tempo (MG).