“ …mi voluntad está conforme con la divina para todo, y consiento en mi morir”
(Jorge Manrique. Coplas por la muerte de su padre. 1470).
Minha irmã Glória faleceu no sábado (24) e nos deixou jururu. Quando contei sua vida ao meu amigo titiriteiro Euclides Coelho de Souza, ele tentou me reanimar com uma ideia luminosa:
– O Papa Francisco devia usar o seu “poder de chave” para canonizar essas santas de bairro, dispensando o trâmite burocrático prescrito no direito canônico. É mais aconchegante ser reverenciada na tua aldeia, onde todos te conhecem, do que ser cultuada no mundo inteiro por desconhecidos.
Mas a Igreja Católica, já faz muito tempo, reconhece pessoas denominadas de veneráveis, que são veneradas ali no lugar onde viveram. Se for comprovado um único milagre, elas passam a ser beata. Dois milagres e viram santa. Aliás, o bairro de Aparecida já tem uma por decreto papal: a venerável Serafina, freira, nascida Noeme Cinque (1913-1988), em Urucurituba (AM), moradora lá no Plano Inclinado, onde o bonde fazia a curva. Transferida para Altamira (PA), ficou conhecida como “Anjo da Transamazônica”. Foi minha professora de catecismo. Sou o único brasileiro a ter recebido puxão de orelha, bem merecido, de uma candidata à santa.
No entanto, para ser santa, santa mesmo, uma das duas condições se impõem: ou a Santa Sé comprova os dois milagres, ou então o Papa reconhece o sensus fidelis, isto é, o sentimento dos fiéis e, nesse caso, é o povo que canoniza em eleição direta, sem o voto impresso que se presta a fraudes. Suffragium Populi, vox Dei.
Se for assim, Maria da Glória Queiroz Nogueira, 90 anos, já é santa. Ela atende às duas condições. É santa do bairro, reconhecida pelos paroquianos nas missas de corpo presente na igreja de Aparecida, em Manaus, no domingo (25) e na de sétimo dia (30). Mas é santa também no quesito milagre. Só mesmo milagres permitiriam educar, num lar pobre, 19 filhos e filhas, uma falecida, os demais casados, vivos e com curso superior, que lhe deram 51 netos e 40 bisnetos, segundo o último Censo de julho de 2021 do IBGE, para uns o Instituto do Beco de Geografia e Estatística, para outros o Instituto Brígido-Glória Enamorados. Além disso, ela teve 16 irmãs e irmãos. É uma longa história que começa em 28 de dezembro de 1930.
Canto de Glória
Nascida na terra dos índios Mura, às margens do lago Caapiranga (AM), no Solimões, Glória ficou órfã de mãe aos cinco anos e logo depois de pai, quando foi adotada por sua prima Elisa, mãe deste locutor que vos fala, que nem nascido era. Quando abri os olhos, Glória já estava lá me esperando, ninou e acalentou minha infância. De lá saiu para se casar com o alfaiate Brígido Nogueira, mas nunca nos deixou. Seis dias antes de morrer, enviou uma mensagem para celebrar meu aniversário e gravou uma música com a voz ainda firme:
– Meu menino, te carreguei no colo, te embalei, cantei e te fiz dormir.
Cada vez que ouço esse canto de Glória – foram inúmeras vezes – sinto tremuras e palpitações de bezerro desmamado, como se sua morte me deixasse em um buritizal sem água. Ela, tão cedo órfã, foi mãe de tantos outros e não apenas daquela multidão contabilizada pelo IBGE.
Dois dias depois de sua morte, Glória celebraria 70 anos de união matrimonial, a metade desse tempo como viúva, quando atravessou o Brasil de ponta a ponta e viajou por 42 países da Europa, Ásia e América, sempre em visita à prole que fez pós-graduação em universidades brasileiras e no exterior. Desta forma, conheceu gregos e baianos e tirou lições de vida com aquela sabedoria do avô de José Saramago:
– “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler e nem escrever” – disse o escritor em discurso, quando recebeu o Nobel da Literatura.
Sabedoria
Glória, dona de inteligência penetrante, estudou até o quarto ano primário, mas esbanjava sabedoria, sensatez, capacidade argumentativa e, sobretudo, integridade e profundo senso de justiça. Convencia e arrastava o interlocutor, com um raciocínio lógico consistente, carregado de beleza e de fina sensibilidade. Passou alguns dias comigo em Niterói. Visitamos o Museu de Arte Contemporânea projetado por Niemeyer. Ao ver aquele “disco voador” levitando sobre um espelho d´água, fez comentários tão originais sobre o uso da água como ornamento, que me deixou de queixo caído.
Era uma grande contadora de histórias. Sabia conversar, mantendo seus olhos vivos e sorridentes, quando trazia claras lições do Evangelho. Mas a boa nova que anunciava não era a partir de Cafarnaum, de Betsaida e nem do lago Tiberíades. O cenário era o Beco da Indústria, o igarapé de São Vicente, parábolas locais protagonizadas não por samaritanos, fariseus e saduceus, mas por vizinhos, netos, irmãs, filhos, genros, noras, que reforçavam princípios de justiça, solidariedade, honestidade, fé e as relações de amor, amizade e amparo aos desvalidos, aos que sofrem.
O livro “80 anos de lutas, conquistas e Glória”, que ela escreveu e eu prefaciei, começa com uma declaração de amor a Brígido Nogueira e prossegue com poesias de sua autoria, retalhos de memória e valores éticos, defendidos não apenas por palavras. Todas as terças-feiras, numa grande mesa de seu quintal, ela oferecia discretamente, sem alarde, um almoço para 30 a 40 meninos que trabalhavam fazendo carreto na feirinha de Aparecida. Ela atualizava o Evangelho.
Humor
Aliás, sua relação com a modernidade é outro capítulo. Em meados de 2017, em conversa por telefone, me disse: “Te envio mensagem pelo WhatsApp”. Confesso que até então eu havia resistido a aderir a tal geringonça, para horror dos meus amigos. Por causa dela, tomei aulas particulares com minha filha e passei a zapzapear.
Sua neta Neyla a visitou na véspera do aniversário de 80 anos:
– “Minha avó nunca usou adornos, batom, maquiagem, mas quando fui almoçar com ela tomei um susto: a ‘velhinha’ tinha acabado de furar a orelha. Manifestei surpresa, ela respondeu que a ocasião pedia. Já que não tinha tido festa de 15 anos, debutaria aos 80 anos e precisava estar à altura”.
Glória nas alturas. Curou meu medo do câncer com o qual convivo, o que é, aqui pra nós, um milagraço, em se tratando de um hipocondríaco. Um dia, apavorado com os resultados do meu exame de sangue e de densitometria óssea, antes de mostrá-lo ao médico, telefonei pra ela e gemi:
– Mana, a prova funcional hepática mostra que os níveis da bilirrubina total e da fosfatasse alcalina estão estratosféricos. Meus ossos estão se esfarelando.
Ela perguntou e eu confessei que nem sabia que diabo era bilirrubina.
– Então por que você está angustiado?
– Por que é um nome, aqui pra nós, apavorante. Ainda por cima, os quatro evangelistas fazem um silêncio estrondoso sobre densitometria óssea e não mencionam sequer uma vez a bilirrubina, não existe nenhum milagre de Jesus baixando o nível da bilirrubina.
– Estou rezando diariamente por tua saúde – ela disse.
Suas palavras me trouxeram paz e me animaram a sair pra porrada com a bilirrubina.
Passaporte e visto
Faz alguns meses, ela desmaiou com dores insuportáveis e foi de ambulância para o hospital. Eram as sequelas da covid: coração e pulmões afetados e água na pleura. Passou 12 dias na UTI, mas passou a rasteira no coronavírus e na política genocida do governo. Saiu do hospital e acalmou os entes queridos assustados:
– Calma, a viagem não é agora, o passaporte já tenho, mas ainda não tirei o visto.
No sábado (26), com o visto na mão carimbado por São Pedro, chamou todos os filhos e avisou que estava partindo, “consintiendo en su morir”. Despediu-se de cada um, lúcida e serena, fechou os olhos e viajou em paz. Meu coração luterano, com um distanciamento crítico em relação aos mais de quatro mil santos da Igreja Católica, enaltece esse ser especial que foi a Glória. Em verdade em verdade vos digo: o que dói não é sua morte, condição de tudo o que está vivo, mas a interrupção de uma interlocução afetiva e cheia de sabedoria. Não poderemos mais ouvi-la, a não ser em gravações:
– Meu menino, te carreguei no colo, te embalei, cantei e te fiz dormir.
Resta um consolo. Comentei com a antropóloga Martha Azevedo que a morte do nosso amigo comum, o jesuíta Bartomeu Meliá, era como se um pedacinho de cada um de nós tivesse sido sepultado com ele. Ela respondeu com a sabedoria dos Guarani:
– Minha sensação é inversa. É como se ele tivesse se distribuído para todos nós e eu levo comigo uma parte dele.
Registro aqui os pedacinhos deixados pela Glória.
Irmãos (16) quase todos vivos: Cleonice e Damiana (de pai e mãe), Alfredo e Elisa (por parte de pai), e, por parte de mãe adotiva: Regina, Helena, Ângela, Stella, Ribamar, Roberto, Ricardo, Aparecida, Celeste, Elisa, Domingos, Céu.
Filhos (19): Vicente, Ana, Geraldo, Fátima, Socorro (*), Aparecida, Cláudio, Thomaz, Eliza, Brígido Junior, Maria de Jesus, Glorinha, Mário, Deolinda, Hilário, Edneide, Piedade, Lúcia e Cristina.
Netos (51): Daniel, Juliana, Luciana e Isabela (grávida); Saulo, Aline e Edgard; Heloísa, Marcus e Daniela; Sandro e Sônia Beatriz; Neyla, Gisele, Ney Jr e Mateus; Lia, Maria Fernanda, João Paulo, Pedro, Rafaela; Mariana, Rebeca e Lucas; Maria Cecília; Brígido Neto e João Carlos; Eduardo, Bruno, Maria da Glória; Anne, Leonardo, Gabriel, Flávia, Rafhael; Débora, Renata (grávida) e Davi; Amanda (grávida), Miguel e Gabriel; André e Andrezza; Eduarda e João Pedro; Gabriela e Carolina; Yan; Jéssica, Carlos e Júlio.
Bisnetos (40) – Ana Júlia, Ben e Liz; Luiz, Paulo, Saulo, Ana e Renzo; Ema e Mia; Laura e Sandro; Stefane e Taiane; Melissa, Bianca, Maria Clara, Vitória e Heitor; Lorenzo, Marina e Lua; Sofia; Allana e Agnes; Guilherme, Vinicius, Maria Luísa, Mariah, Esther, Samuel, Davi e Maria Flor; Léa e Dan; Luísa e Luís, mais três no ventre materno, que escutarão as histórias da bisavó.