Dói encarar a morte quando ela leva nossos afetos, que sabemos finitos, para outra dimensão. Na tarde dessa sexta (25), foi sepultado no cemitério São João Batista, em Manaus, aos 66 anos, Geraldo Pantaleão Sá Peixoto Pinheiro, meu aluno e, ao mesmo tempo, meu professor no curso de História da Universidade do Amazonas. Fomos parceiros em várias publicações, em tantos cursos, em muitos eventos, projetos, exposições, viagens e conversas, a última em Manaus, no bar Galvez, com ele e Simara, sua fiel companheira. A cumplicidade foi tanta em torno da paixão pelos índios, pela Amazônia, pela história, pela vida, que viramos irmãos.
Conheci Geraldo em meados de 1983 quando, recém chegado da França, com um doutorado ainda sem defesa de tese, entrei numa sala de aula do velho ICHL para ministrar a disciplina História do Amazonas. Lá encontrei aquele aluno magricela e tímido, excepcionalmente brilhante, que até então nunca havia saído de Manaus, mas que conhecia a historiografia francesa melhor do que o professor vindo de Paris respaldado pelas aulas de Ruggiero Romano e Pierre Vilar. Alguns colegas mais ciosos da hierarquia ficaram escandalizados quando berrei aos quatro ventos:
– Tenho um aluno de graduação que me dá aulas e orienta minhas leituras.
Isso é raro, mas aconteceu com esse aluno que bebeu História na mamadeira, no berço, com seu pai, de quem herdou o nome e as luzes, o mestre Geraldo Pinheiro, um sábio da Amazônia como não existe mais. Compartilhava generosamente com colegas e professores a biblioteca paterna. Dessa forma, enquanto eu ministrava aulas, fui discípulo do meu aluno com quem muito aprendi. Saiu graduado pela UFAM para o mestrado na USP, mas seu orientador, o historiador Marcos Silva, o encaminhou diretamente para o doutorado, reconhecendo a densidade de seus conhecimentos, sua maturidade intelectual e o domínio que tinha das ferramentas de pesquisa.
As pesquisas
Sofríamos ambos de pedantismofobia, marcados pelo temor de que o sistema nos engolisse. Talvez, por isso, seu primeiro doutorado na USP também foi interrompido. Só muito depois, em 2012, defendeu na Universidade do Porto, em Portugal, a tese – Imprensa, Política e Etnicidade: Portugueses Letrados na Amazônia: 1885-1937, Acompanhei a elaboração de cada capítulo, da mesma forma que ele contribuiu para minha tese sobre a história das línguas na Amazônia, me apresentando Francisco Amorim, um portuga de Povoa de Varzim, do séc. XIX, que chegou no Pará, aos dez anos de idade, em plena Cabanagem, aprendeu Nheengatu e virou caboco.
Geraldo aborda em sua tese o processo de construção de uma portugalidade na Amazônia, através da análise dos jornais editados por imigrantes portugueses em Belém e Manaus. Navega pela antropologia e pela história cultural para discutir a construção e a negociação da identidade luso-cabocla. Usa, entre outros, os trabalhos do historiador Marco Morel para avaliar a relação imprensa e poder. Sua pesquisa, referência nesse campo, reconhecida pela UERJ, que revalidou o diploma com louvor, originou convite para que integrasse o Conselho Científico do Museu da Emigração – Portugal e o quadro de pesquisadores da Universidade do Minho.
Antes mesmo do doutorado, compartilhamos a autoria e a organização de várias livros sobre história da Amazônia, história da Imprensa, história de Manaus. Num 24 de dezembro de 1983, à noite, com as respectivas famílias nos esperando para a ceia de natal, Geraldo e eu trabalhamos numa máquina de escrever até as 23 horas para fechar, dentro do prazo, o livro “A Amazônia Colonial: 1616-1798”. Um ano depois, na casa de dona Teresa Nóvoa, com um grupo de alunos de História, organizamos o catálogo de jornais publicado em outro livro “Cem anos de Imprensa no Amazonas (1851-1950), com material coletado anteriormente por alunos da disciplina Jornalismo Comparado.
As exposições no Museu
A presença afro na Amazônia estava dentro de seus horizontes, em grande medida motivado pelo velho Geraldo, que tornou visível a influência negra na cultura de Manaus, nos batuques, na religião, na vida citadina e na produção intelectual da cidade. O novo Geraldo publicou vários artigos sobre o tema, um deles nos Anais do VI Congresso Afro-luso-brasileiro realizado no Porto, em 2000, o outro, quando já aposentado, apresentou “A manipulação da memória oficial sobre a presença afro na Amazônia” no seminário no Dia Mundial de Combate ao Racismo, em 2017. Um ano antes, no evento pela Igualdade Religiosa, escreveu o texto Baláio da Oxum.
Mas foi a temática indígena que absorveu grande parte do seu interesse acadêmico. Guardo ainda a xerox do livro de Von Martius – Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios Brasileiros (1844) – registrado na biblioteca do velho Geraldo com o número 279, que o novo Geraldo me enviou com a foto do pai.
No Museu Amazônico, do qual foi diretor (1993-96), organizou a documentação colonial sobre o Grão Pará e a Capitania do Rio Negro copiada do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal. Viajou à Áustria, onde conheceu as coleções etnográficas do séc. XIX do Museu Etnográfico de Viena, que lhe permitiu montar a exposição Natterer: um naturalista austríaco na Amazônia. Presidiu ainda a Exposição Internacional Memórias da Amazônia: Expressões de Identidade e de Afirmação Étnica com mais de 300 peças coletadas nas comunidades indígenas do Rio Negro, no séc. XVIII, por Alexandre Rodrigues Ferreira e que fazem parte dos acervos das universidades do Porto e de Coimbra.
Na qualidade de curador, focou seu trabalho na Amazônia indígena. Coordenou o projeto Ara Watasara e promoveu diversas mostras da cultura material indígena. Foram muitas: das Manufaturas em madeira aos Trançados do Amazonas, da Arte Tikuna à Cultura Tuyuka, além de uma exposição histórica sobre Manaus, modos de ver, modos de viver.
Lembro de nossa parceria na exposição itinerante As Primeiras Imagens da Conquista, com desenhos do cronista andino Poma de Ayala, do séc. XVI, realizada pela UERJ, no Rio, e acolhida pelo Museu Amazônico, assim como da mostra Escultura Tikuna – uma homenagem ao Museu Maguta, que apresentou ao público de Manaus esculturas de pássaros, peixes, quelônios, insetos, sapos, cobras e outras imagens esculpidas pelos artistas tikuna.
E os Miranha, que estavam “desaparecidos”? Nós os encontramos por acaso, em 2005, num hotel do Boulevard Amazonas, onde eu estava hospedado. Com Geraldo, entrevistamos Eunerina Marins, cacique Miranha da aldeia de Cajuhiri. Ela havia se deslocado de Coari com seus parentes para questionar a Petrobrás pelos impactos do poliduto de Urucu que atravessa suas terras. A documentação histórica trazida pelo ex-diretor do Museu Amazônico foi fundamental para municiar a reivindicação dos índios.
Cursos com os índios
O conhecimento da documentação e das coleções etnográficas permitiram que juntos ministrássemos vários cursos de formação de magistério indígena. Foi o caso das aulas de História na Licenciatura Intercultural para Professores Indígenas do Alto Solimões da Universidade do Estado do Amazonas, em 2008, ministradas na Aldeia Filadélfia, em Benjamin Constant, por quatro docentes: David Leal, que havia sido aluno de Dorinete Bentes, que era ex-aluna de Geraldo, que havia tido aulas comigo. Éramos quatro gerações de professores a serviço dos Tikuna e Kambeba.
Foi um momento enriquecedor, de muita alegria na repartição de saberes. Dois anos depois, em 2010, Geraldo e eu subimos outro rio para dar o I Curso de História do Médio Rio Negro, em Barcelos, a professores e lideranças indígenas com as quais discutimos identidade étnica, valorização das línguas indígenas, trajetórias pessoais, memórias e narrativas regionais. Não precisa dizer que foi o Geraldo, com sua paixão pela história, que organizou a coletânea de documentos históricos, cujos trechos usados no curso juntos selecionamos.
Três anos depois, em 2013, subimos outra vez o rio em nova parceria no II Curso de História sobre o Médio Rio Negro, realizado na aldeia Baré de Canafé. De noite, sem luz, sem televisão, sem internet, iluminados por uma lua escandalosa, funcionavam as rodas de conversa, com Camila Sobral, Carla Dias, Lirian, Iñaki Gomez, trocando um dedo de prosa com os índios, entre os quais Braz França, ex-presidente da FOIRN e Marivelton Baré, com seu rico repertório de anedotas. Aí, Geraldo, grande contador de histórias, gozador, sacana, brincalhão, nos hipnotizava com suas narrativas.
“Guardo boas recordações de sua leveza, alegria e paixão pela história” – disse uma das organizadoras do curso, Lirian Ribeiro. Quem conviveu com esse amigo e parceiro querido pode confirmar isso. Compartilhamos com a família enlutada a dor da perda. Na foto que Lirian postou no facebook, em que estamos nós, numa canoa, a legenda: “Nós, pelas águas do rio Negro, durante o evento em Canafé”. Lá vamos nós, navegando pelas águas do rio Negro. Boa viagem. Até breve. Hasta siempre.
P.S. – A tese de Geraldo vai dedicada, in memoriam, ao pai e à mãe, Maria do Céo. Aos filhos Geraldo Neto, Marcelo, Danielle, Mariana e Alexandre. E “aos meus irmão em Clio, José R. Bessa Freire (Unirio, Uerj), Luís Balkar e Maria Luiza Pinheiro pelo permanente e profícuo diálogo […] Sem eles é muito provável que o prazer do “fazer História” desta experiência fosse comprometido de forma irremediável”. Estamos todos pranteando sua partida.