E o tempo corre… Quem parte leva a sua memória, o seu modo de ser rio,
de ser ave, de ser adeus… México. Rosário Castellanos (1925-1974).
Parece que a velhice é isso: um doloroso pacto com a solidão, como escreveu Gabriel Garcia Márquez. A gente vai aos poucos se despedindo das pessoas que nos cercam até chegar a infinita e suprema solidão: é a nossa vez de ir embora. Só mesmo o ocaso da infância me faria mudar o tema da crônica de hoje programada para criticar esse governo que agride a democracia e os povos indígenas. Então, peço licença para dar adeus a alguém que partiu.
Dessa vez foi o amigo de infância Geraldo Cavalcante Chacon, conhecido como Bocão, destroçado aos 69 anos por um câncer no esôfago, um carcinoma epidermóide invasivo, tratado num momento em que – como ele postou no facebook – “o SUS/Am está sobrecarregado e tudo precisa ser feito em clínicas particulares, muitas delas também lotadas”. Amigos fiéis fizeram vaquinha para pagar sessões de rádio e quimioterapia, tomografias, endoscopias, biópsia – aquela via-crúcis que quem percorreu sabe como é.
Há várias décadas eu não via o Geraldo Bocão ou Geraldo Boca de Canoa, abreviado depois para Boca – apelidos que ele assumiu com muito humor. Conheci sua mãe, dona Zildete, uma senhora magrinha casada com Jofre Chacon, companheiro de copo e de cruz do meu pai. O tempo e a geografia nos separaram, mas ficaram lembranças indeléveis da convivência pelas ruas, becos e igarapés do bairro de Aparecida, em Manaus, nas décadas de 1950-60. Uma delas ocorreu numa época em que as torneiras deixaram de pingar e a gente tinha de carregar água retirada em latas do igarapé de São Vicente para o consumo em casa.
Lata d´água na cabeça
Foi assim. Nesse dia, vários meninos, entre eles eu e o Bocão, subimos os degraus da escadaria, cada um equilibrando na cabeça uma lata d´água. Ele ia abastecer a casa da sua avó, dona Odete Periquita, uma costureira, mulher boa, mas muito estressada e terrivelmente autoritária, que morava nos altos da taberna do Fernando português, ali na esquina da Gustavo Sampaio com a Xavier. Lá de sua janela, ao ver que a lata estava pela metade, ela berrou e esculhambou o neto, desconsiderando que a lata cheia seria peso excessivo para uma criança.
Num belo gesto de rebeldia que eu admirarei pelo resto da minha vida, o Bocão jogou a lata no chão e derramou toda a água, dando o troco:
– Então quem vai carregar agora é a senhora.
Desceu correndo a rua, enquanto o Zequinha, filho do Severino Pão Duro, que a tudo assistira, cantava uma marchinha de carnaval, sucesso na época, adaptada para a ocasião:
– Lata d´água na cabeça, lá vai o Bocão, lá vai o Bocão…
A rebeldia contra o autoritarismo da dona Odete, que lhe deu uma surra, voltou a se manifestar na madrugada do Sábado de Aleluia, na popular e às vezes cruel cerimônia do “Serra Velho”, quando Bocão “serrou” sua própria avó. Com serrotes, pedaços de pau e latas, a turma de “serradores” fazia um barulho infernal na porta da casa de moradores idosos, entoando:
– As caveiras do outro mundo / vieram lhe dizer-êêê / que agora neste ano / você vai morrer-êêê.
Depois gritavam em coro:
– Odete, encomende a alma a Deus, porque seu corpo já não vale nada.
A brincadeira, meio pesada, lembra “La Catrina” do México simbolizada na tradicional caveira, que celebra a fugacidade da vida e encara a morte com humor. No bairro de Aparecida, alguns velhos entendiam assim, como gozação, e até apareciam na janela para um dedo de prosa, como o seu Peres, padrinho de batismo do Bocão. Outros se irritavam, como dona Odete Periquita, que jogava cada ano o conteúdo de um penico sobre as “aves agourentas”.
Quase despedida
Geraldo Bocão, torcedor apaixonado do Botafogo, adorava bater uma bola em peladas memoráveis com os amigos. Queria ser o Garrincha e driblar o mundo. Nesta fase da vida em que trocamos os sonhos por lembranças, ele postou um texto poético e nostálgico, quase de despedida, que escreveu pouco antes de partir, aqui transcrito com ligeiros retoques, no qual idealiza a Manaus que se foi:
– “Aí, se me perguntassem o que eu preferia diante da atual violência, insegurança e falta de respeito, eu responderia: a tranquilidade de outrora daquela Manaus pacata, sem luz, sem água e sem as “mordomias” de hoje, mas repleta de muita paz e amizades.
“Lembro das filas nas madrugadas para comprar apenas um pouco de carne, açúcar, feijão. Dos Blocos de Carnaval e do Mela-Mela com Maizena, dos arraiais e quermesses, do grandioso Festival Folclórico no campo do General Osório: as apresentações das tribos Andirás e Iurupixuna, dos bois-bumbá Tira Prosa, Corre Campo, Mina de Ouro, Coringa, Vencedor e do nosso Garrote Brinquedinho, do imbatível Luz de Guerra, do Pássaro Japiim da Tia Paquita e da Quadrilha Flor do Plano.
“Das fogueiras juninas enormes queimando nas ruas e das comilanças nas casas dos vizinhos. Do futebol dos grandes clássicos bem disputados Rio x Nal, Pai x Filho, Galo x Preto e das torcidas que lotavam os estádios da Colina e do Parque Amazonense. Do Cine Pulga dos Padres Redentoristas e dos filmes de caubói no terreno do Humberto Bacurau, nosso cinegrafista. Do Curral das Éguas – aquele cabaré que existia no flutuante do seu Zitão.
“Do Serra Velho e do roubo de porcos e galinhas para o banquete do Sábado de Aleluia. Das peladas jogadas na rua Xavier de Mendonça, na quadra do Colégio Aparecida, na prainha do Igarapé São Vicente. Do papagaio do Seu Geraldo e do Russo, do jogo de bolinha com caroço de tucumã e da brincadeira de “Geral” nas noites quentes de Manaus. Do banho de rio, de dia e de noite, após às nossas brincadeiras, das pescarias de tarrafa com o Auri na praia do GEF. Diria sem titubear, cem vezes melhor o tempo de criança/adolescente na Aparecida e naquela Manaus, garanto que não tinha igual”.
O texto do Bocão termina com uma frase em amazonês:
– “Teleze é? Viajei no Tempo”.
Fogo na roupa
Viajou mesmo. A ex-diretora do Ginásio de Aparecida, minha irmã Regina, acompanhou essa viagem e usou uma expressão da época para qualificar aquele aluno danado:
– O Bocão era “fogo-na-roupa”, me deu muita dor de cabeça.
Irreverente, peralta, transgressor, moleque no sentido mais positivo do termo, ele deixa uma lição de vida, de alegria, de insubordinação e de desobediência, tão necessária nesses tempos milicianos em que se tenta mergulhar o Brasil numa ditadura fascista. (Teleze é, Bocão? Eu tinha que mencionar isso, não tinha não?).
O sepultamento foi nessa sexta-feira (6). As saudades ficam nos fragmentos de sua memória, na estrela solitária do Botafogo e no seu modo de ser igarapé, de ser adeus. Lá onde está, deve ter encontrado a vovó Odete Periquita. Se ela frescar muito, corre o risco de ser “serrada” outra vez, bem nas barbas de São Pedro. O Bocão não brinca em serviço, nem no céu.
P.S. – São vários irmãos: Nonato, Euclides, Jofre, José Ricardo, Paulo, Angélica, Cecília. Os pêsames da coluna Taquiprati à família enlutada, à esposa Ivaldete Chacon, aos filhos Mário e Bruna, à neta Camila e ao neto Bruno, motivo de orgulho do avô por haver se sagrado campeão brasileiro de Jiu Jitsu na categoria 15/16 anos. As condolências se estendem ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida e a Associação Comunitária
Obs: Agradecemos as fotos enviadas pelo Tuta e Regininha.