Nós, brasileiros, chupando o dedo, assistimos neste domingo o enfrentamento da seleção Franco-africana x Croácia decidindo em Moscou o título de campeã do mundo. Meus dois melhores amigos estão em torcidas opostas. Monsieur Freirré, como era conhecido quando vivia exilado em Paris, vestido de azul, berra diante da televisão: “Allez les bleus”. O outro, que adotou o nome de Ribamarich, uniformizado com a camisa quadriculada de toalha de mesa, dá adeus aos franceses: Dovidenja francuski. Ele torce pela Croácia, um país pequeno como o Uruguai, com a mesma garra charrua.
Qualquer que seja o resultado, não acredite nas “explicações” do Galvão Bueno. Aguarde o relatório da “Expedição Priquita” integrada por cientistas da Amazônia, que irá pesquisar in loco, com métodos científicos rigorosos, as causas do fracasso ou da vitória da França. A expedição se inspira em enfrentamento similar ocorrido em outro campo, em 1982, transmitido diretamente pela TV Globo, que lançou ao ar em maio de 1985 uma série intitulada “A Amazônia de Cousteau”, mostrando aos brasileiros os mistérios da floresta e do rio.
Jacques Cousteau (1910-1997), um oceanógrafo, ex-oficial da marinha francesa, durante um ano e meio percorreu o rio Amazonas a bordo do Calypso, um navio-laboratório, que tinha em sua tripulação um piloto de origem croata. Já que custou a soma equivalente a 40 bilhões de cruzeiros – moeda da época, foi possível contar, além do Calypso, com várias embarcações de apoio, hidroavião, helicóptero, três caminhões, um deles anfíbio, cientistas e uma equipe de apoio logístico.
A “Expedição Jacques Cousteau” se dividiu em três grupos de trabalho. O primeiro documentou na boca do Amazonas a pororoca ou porrrorocá, e subiu o rio até Iquitos, no Peru. O segundo fez trajetória inversa, partindo das nascentes do rio Amazonas, na Cordilheira dos Andes, até a ilha de Marajó, onde se deliciou em Soure com os inesquecíveis biscoitinhos e com o queijo de búfala preparado por dona Zeneida Lima, a nossa pajé cabocla. O terceiro marchou por um trecho da floresta para mapear a biodiversidade.
Já que custou
A Expedição mereceu atenção especial da TV Globo. Todas as quintas-feiras, à noite, até o dia 6 de junho, as moscas da Feira do Bagaço, na Compensa, em Manaus, deixavam de voar para não fazer barulho. Professor não protestava, polícia não reprimia, jornalista não escrevia, dedo-duro não delatava, governador e prefeito não roubavam. O Brasil inteiro, com o peito inflado de orgulho verde-amarelo, retinha a respiração, com os olhos grudados na TV para acompanhar as peripécias do oceanógrafo francês e do piloto Rakitic, o mesmo nome do companheiro de Modric na seleção da Croácia, que só viria a ser tornar independente da Iugoslávia em 1991.
A primeira imagem da série era uma sombra do comandante Cousteau, de perfil, com seu nariz de ave de rapina e sua cara de “cientista arrojado”. O piloto croata, que conduzia o barco-gaiola Anaconda, não apareceu. A voz anasalada de Sérgio Chapelain em off anunciava com emoção contida “A maior expedição científica à Amazônia”, com uma revoada de pássaros na ilha do Marajó, o pirarucu apresentado como “o rei do rio”, capivara, cobras, ariranhas e “os índios Jívaro, redutores de cabeça”. Chapelain, imitando o Bussunda quando imitava o Chapelain, avisou:
– “Veja no próximo segmento Cousteau mostrar como as águas do rio Negro não se misturam com as do Solimões”.
Quem viveu, viu. Depois de quatro minutos de sabão-em-pó, blue-jeans, estomanol e 75 comerciais complementares, o comandante Cousteau efetivamente mostra algo impressionante: o rio Negro era tão Negro como Mbappé, Umtiti, Pogba e Lemar. O Solimões era amarelo como a seleção canarinho e o tucupi. Mas – oh, céus – a água de um não se misturava com a do outro, nem sequer adquiria um tom cinza. Embora o encontro das águas já tivesse sido relatado por frei Gaspar de Carvajal, em 1542, e por centenas de viajantes ao longo de cinco séculos, era a primeira vez que um francês mostrava o fenômeno numa tv brasileira.
Um trabalhador rural do Careiro, que todo dia atravessa o rio, chora copiosamente emocionado:
– Eu passo lá diariamente, mas não sabia que era assim.
Corte. Novamente a voz eternamente gripada do Chapelain anuncia:
– Veja no próximo segmento, uma descoberta sen-sa-cio-nal do comandante Cousteau.
Boto cor de rosa
A descoberta ex-tra-or-di-ná-ria de Cousteau anunciada pela Globo era ELE, O BOTO cor de rosa, apresentado aos embasbacados amazonenses e ao Brasil, do Oiapoque ao Chuí. Cousteau sai nadando atrás do boto pela primeira vez em 1982 e a voz de Chapelain treme tanto quanto se irradiasse a descoberta da estrutura do DNA ou a teoria da relatividade. Ele está maravilhado com a dança, o balé do boto cor-de-rosa.
Raimundo, o prático do barco Santo Afonso, dos padres redentoristas, que navegava há 35 anos indo-e-vindo pelo Solimões, manifesta-se derrotado:
– Eu já vi muito boto. O tucuxi, que é pequeno, de cor preta ou cinza. O vermelho ou malhado que é maior e menos arisco. Mas cor-de-rosa, tipo bunda de neném, eu nunca tinha visto não. Quer dizer, ver eu já vi muitas vezes. Mas como o “homem” só descobriu agora, eu acho que não vi não.
Cousteau nos mostra ainda outras descobertas insólitas: piranhas com cárie nos dentes, lontras, ariranhas, jacarés, piracemas, pororocas, tucunarés voadores. Agora, um Chapelain eletrizado registra uma cena fundamental para compreender os mistérios da Amazônia: O comandante Cousteau, através do rádio, dialoga com seu filho Jean Michel, que com uma fita métrica desceu dos Andes para provar que o Amazonas era o maior rio do mundo.
– Jean Michel?
– Oui, papa.
– Ça va bien?
– Oui, papa.
– Tu peux venir, mon fils. La picarétage est déjà finie.
A TV Globo pagou a Jacques Cousteau uma baba para divulgar o filme no qual o piloto croata do barco não aparece. Em represália, o Taquiprati convidou Rakitic para comandar a “Expedição Priquita” destinada a revelar os mistérios da França. Qual o tamanho do rio Sena e onde é que ele nasce? Suas águas se misturam com as do Marne? O rio Sena tem pororoca? Pogba e Mbappé são discriminados por Jean-Marie Le Pen e sua filha Marianne? Manifestações racistas interferem no resultado do jogo de resultado imprevisível? Qual o destino da Casa do Tarzan batizada com o nome do oceanógrafo?
Essas e outras informações sobre a França serão respondidas pelos cientistas do INPA, do Goeldi e das universidades do Amazonas e do Pará que integram a Expedição Priquita no barco pilotado por Rakitic. Entre outras coisas, o relatório deve retratar a trajetória do rio Sena: “Elle roule, roule, roule, vers la mer où tout finit…Elle chante, chante, chante, chante, Chante l’amour de Paris. Car la Seine est une amante et Paris dort dans son lit”.
A Bastilha vai cair? Allez les bleus? Ou Dovidenja francuski?