Um olhar demorado sobre o governo nos últimos 15 anos de quem esteve por lá nos 15 anos anteriores. Nada escapa ao ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.
Avesso a entrevistas, Malan falou longamente sobre “Uma Certa Ideia de Brasil”, nome do livro que reúne artigos seus publicados no jornal O Estado de S. Paulo entre 2003 e maio de 2018.
Não se furtou a comentar certa insistência do governo Lula em tratar os avanços do país como tivessem começado em 2003. Mas falou também dos ganhos obtidos no período petista e das inúmeras vezes em que alertou, em seus artigos, sobre o perigo dos gastos excessivos.
Às vésperas das eleições, rechaça autoritarismos e salvadores da pátria e avisa: a história é um infindável diálogo entre passado e futuro. Portanto, a “memória do futuro” exige a memória do passado.
O cenário de inflação e juros baixos veio para ficar?
O fato de termos derrotado a hiperinflação não significa que a inflação muito baixa tenha se incorporado ao DNA do Brasil. Mas a situação é muito mais favorável do que a da Argentina e da Turquia.
Temos combinação de superávits na balança comercial, déficits reduzidos em conta-corrente, reservas de US$ 380 bilhões e investimento direto que continua fluindo. O investidor chinês diz que está olhando horizonte de 25, 30 anos porque acha que o Brasil vai conseguir equacionar seus problemas. Acho que eles estão corretos. Mas há urgências.
Qual é a questão mais urgente?
Lidar com a situação fiscal, e aí há um grau razoável de busca por convergências possíveis. O Brasil é uma sociedade de massas urbana, com legítimas diferenças de opinião e conflitos de interesse.
Há duas formas de lidar com isso: uma é buscar soluções negociadas de compromissos, pois estamos em uma democracia. A outra é o regime autoritário, que, por não ter de lidar com o Congresso e o Judiciário, pode, aparentemente, ser mais eficaz no tipo de demanda que ele resolve atender. Mas não é solução sustentável ao longo do tempo. A ideia de que é possível um messianismo, um salvador da pátria, não serve para o Brasil de 2018.
Pressões por mais gastos não viriam da necessidade de inclusão de uma população gigante cuja maioria estava alijada do crescimento?
É uma legítima pressão numa sociedade democrática. Mas de 1991 a 2016, o gasto público passou de 11% para 20% do PIB, em tentativas de responder a vários tipos de demanda.
O problema é que, quando se faz isso de modo reiterado, com o gasto subindo acima do PIB, se torna insustentável. A não ser que se aumente a tributação ou o endividamento público, que é a tributação sobre gerações futuras.
A nossa sociedade tem uma visão muito cética em relação à ineficiência do governo, mas, ao mesmo tempo, continua achando que ele deve resolver todas as questões, embora não queira aumento de imposto. São escolhas difíceis.
Os países europeus que hoje têm bom padrão de vida se mataram entre as duas grandes guerras. Depois disso, conseguiram administrar esses conflitos sabendo que era do interesse de todos fazer isso por meio de negociações.
Mas nós já nos matamos. Estamos no caminho das negociações?
Acho que não temos alternativa se não tentar. Desistir de tentar é a barbárie, na área de segurança pública, já visível. Isso tem a ver com problema de prioridades na alocação de recursos escassos.
Não temos prioridades? Achamos que tudo é prioritário. Sob algum sentido é. O Brasil que eu quero é que tenha segurança pública, saúde, educação. Mas um governo tem obrigação de dizer que recursos não são infinitos e, portanto, há escolhas difíceis. Tem uma dívida com trajetória insustentável. Vamos ter que ter uma sequência de superávits primários —a não ser que alguém queira dar um calote na dívida ou reestruturá-la—, e isso exige coisas que precisam ser iniciadas agora.
Por exemplo? A reforma da Previdência. E, no curtíssimo prazo, reduzir a alta taxa de incerteza sobre o que um futuro governo, que o povo escolherá nas urnas, fará.
O motivo da incerteza é o PT? Ele não aprendeu no governo?
Espero que sim, mas isso tem de se expressar nos termos da campanha. Lula, sob certo sentido, está em sua oitava campanha presidencial. E continua sendo fator determinante apesar de sua situação. Uma qualidade dele: é um grande estrategista político.
Citando o escritor Ivan Lessa, o sr. diz que o Brasil se esquece a cada 15 anos dos últimos 15 anos. Lula, com quase 40% das intenções de voto, é mostra de esquecimento ou de lembrança dos últimos anos?
Pode ser as duas coisas. Tem lembranças, sim, e é óbvio que isso precisa ser reconhecido. A decisão de consolidar os programas de transferência de renda foi correta. Só faltou um pouquinho de generosidade, de reconhecimento da realidade e de não tratar como se tudo tivesse começado do zero a partir de primeiro de janeiro de 2003, o que não foi verdade. Mas o fato é que foi positivo. Mas muita pouca gente no Brasil se dá conta de quão excepcional foi o período de 2003 a 2008 para o mundo.
Mas pode variar de governo para governo o que pode ser feito com esse bônus, não?
Parafraseando o próprio Lula numa entrevista que deu em 2009: “Nosso erro foi tentar fazer muito mais do que era possível fazer com os recursos disponíveis e, nesse processo, tivemos um enorme desperdício de recursos”.
Acho que foram desastrosas as decisões de construir ao mesmo tempo quatro refinarias no Brasil e comprar mais duas fora, de tentar construir a maior indústria naval do mundo, etc.
Enquanto os termos de troca estão subindo, é possível atuar em várias frentes, mas não é possível fazer isso para sempre. Não fui só eu, mas vários economistas diziam que a situação que vivíamos a partir de 2012 era insustentável. E, de fato, o desemprego chegou a 6% em junho de 2014 porque estava um enorme “pau na máquina”. Mas aquilo teria implicações mais à frente. O objetivo foi alcançado, mas foi uma vitória de Pirro.
No livro, o sr. cita a necessidade de sonhos e alianças. Nosso grande problema são os sonhos ou as alianças?
Lideranças que sejam capazes de fazer esforço para juntar as duas coisas. Tem um amigo que tem um livro que se chama “Você é do Tamanho dos seus Sonhos”.
Acho lindo isso, mas uma vez brinquei com ele: você deveria colocar “do tamanho de seus sonhos e do grau de esforço, gana, garra e persistência que você dedica para torná-los realidade”. Senão, parece que sonhar basta.
Parece que o sr. se ressente da falta de reconhecimento do governo Lula em relação aos avanços ocorridos antes.
Eu não me ressinto. Eu digo no livro que, para o Brasil, seria muito bom dar continuidade àquilo que estava sendo feito. A política que estava sendo feita no início [dos governos petistas] foi submetida a um crescente fogo amigo, mas foi ela que permitiu que o Brasil aproveitasse o cenário internacional favorável.
O ponto de inflexão foi lá para março, abril de 2006, quando saiu o Palocci e apareceu a história de que “gasto é vida”. Entre 2011 e 2017, enquanto o Brasil cresceu 0,5%, em média, o resto do mundo cresceu 5%.
O sr. diz que só em 1940 o PIB nominal americano voltou ao nível de 1929. E o Brasil, quando voltará ao pico de 2014?
Não vamos recuperar o nível de renda antes de 2020 ou 2021. Não teremos súbita explosão de crescimento. Em especial porque não há um vento a favor internacional. Dependemos do investimento, do consumo, das exportações líquidas. A situação pode mudar se conseguirmos restaurar o clima dos investidores de que o Brasil caminha para resolver seus problemas.
O discurso do Temer quando assumiu foi que a volta da confiança seria rápida. Mas vieram outras coisas também. E faz diferença um presidente eleito —qualquer que seja o resultado das urnas. A escolha das pessoas é muito importante e, nessa área, o governo Temer acertou, ao compor a equipe econômica. Dizem especialistas que havia chance de aprovação da Previdência. Mas ele foi atropelado pelas gravações.
Tivemos uma geração de economistas estudando inflação. A próxima vai olhar o quê?
Implicações do desenvolvimento tecnológico sobre a demanda por trabalho e grau de qualificação de mão de obra e seus efeitos sobre distribuição de riqueza.
Se for convidado, vai voltar ao serviço público?
Você sabe qual é minha idade? [risos].
O sr. cita o escritor Jorge Luis Borges e as memórias de futuro, algo que pode vir a ser. Qual é a sua?
É um Brasil que tente compatibilizar a ideia de liberdades individuais, menos injustiça social e eficiência operacional do setor público e maior competitividade internacional no setor privado. Não é fácil. Muitos poucos países do mundo conseguiram isso.
Raio-X
Pedro Sampaio Malan, 75
Formado em engenharia pela PUC-Rio, tem doutorado em economia na Universidade da Califórnia, em Berkeley; presidiu o BC e foi ministro da Fazenda entre 1993 e 2002;
preside o conselho consultivo internacional do Itaú