“Se fue despacio, despacio, p’a quedarse un poco más”.
Jorge Cafrune. Tata Juancho. Zamba. 1976
Passou a metade de sua vida na Amazônia. Nascido em Pistoia, em 1941, em plena guerra, enfrentou bombardeios ainda no berço. Eu o conheci em Manaus, no meio de intensas lutas na defesa dos oprimidos. Retornou definitivamente à sua cidade natal faz alguns anos. A missa de um mês do seu falecimento será celebrada esta semana. Se não estivesse dormindo ali o sono dos justos, em um dos túmulos, certamente protestaria contra a visita de Bolsonaro ao cemitério da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Foi o que fez em vida, quando o presidente Collor visitou Pistoia, em 1991. Conto o caso como o caso foi, mas antes me permitam apresentar o personagem.
O padre Umberto Guidotti gostava de se definir como um “salmão” – um peixe de pigmentação vermelha, que consegue nadar corajosamente contra a corrente durantes semanas, enfrentando turbulências – segundo depoimento de sua amiga, a missionária Nadia Vettori, ela também da família salmonídae, ela também nascida em Pistoia durante a guerra, em 1944. Ambos chegaram em Manaus, em 1974, com a Missão Pistoia, quando o ditador de plantão era, então, o general Geisel. Talvez a escolha do Brasil se deveu aos laços criados com a ação de soldados brasileiros na libertação da cidade natal então dominada pelo nazifascismo.
No Amazonas, Guidotti nadou contra a pororoca do arbítrio. Fiel à teologia da libertação e à opção preferencial pelos pobres, coordenou em Manaus o Centro de Defesa dos Direitos Humanos da CNBB, organizou o Grito dos Excluídos, lutou ao lado de ribeirinhos e camponeses na Comissão Pastoral da Terra (CPT), apoiou a luta dos sem-teto em ocupações que deram origem a diversos bairros, atendeu portadores de hanseníase no Movimento de Reabilitação dos Hanseanianos (Morhan). Ali onde alguém sofria, ele estava a seu lado com um canto de esperança. Via Cristo em cada pobre, em cada excluído.
Um sonhador
O Amazonas não pode esquecer a atuação do padre Guidotti durante o governo Amazonino Mendes, cujo secretário de segurança Klinger Costa, bolsonarista avant la lettre, adotou o lema “bandido bom é bandido morto” para promover desova de cadáveres, além de manter sala de torturas dentro da Secretaria e uma polícia paralela. A voz solitária de Guidotti, navegando uma vez mais contra o vento, exigiu punição para policiais encapuzados, autores de prisões ilegais em bairros pobres, como no caso de sete adolescentes do Zumbi II, torturados durante quatro dias em cárcere privado. Por causa das denúncias, sofreu ameaças de morte.
Nas missas que celebrava na igreja Menino Jesus de Praga, no bairro da Chapada, da qual era pároco, acolhia os humildes e anunciava que sua prioridade era indicada por três “P”: Pobre, Pão e Palavra. Foi um dos articuladores do Movimento do Betinho pela Ética na Política e na Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria. Depois de quase trinta anos em Manaus, mudou-se para o Maranhão em 2003, onde ficou até 2015 quando, diagnosticado com o mal de Parkinson, retornou a Pistoia.
– “Ainda sou um sonhador que pensa e um pensador que sonha: outro mundo é possível. Uma Igreja mais parecida com o Reino de Deus é possível” – ele escreveu já enfermo, segundo Ugo Feraci, para quem Guidotti permanecia fascinado pela eterna novidade do Evangelho e sempre contra a maré.
No Brasil, o padre Guidotti participou ativamente da campanha “Fora Collor”, que ganhara as eleições se autointitulando “caçador de marajás”, quando na realidade estava mergulhado na corrupção até o tucupi. Collor extinguiu a Embrafilme e desmontou os incentivos à cultura e à educação em nome da austeridade de gastos do Estado. Seu tesoureiro Paulo César Farias, assassinado em circunstâncias misteriosas, era especialista em “rachadinhas” e outras mumunhas. Estamos assistindo agora a reprise desse filme.
Moleque santo
De férias em Comeana, distante 22 km de Pistoia, Umberto Guidotti acompanhou dali a visita de Collor ao cemitério militar, em 1991. Trinta anos antes, os 462 corpos ali sepultados haviam sido exumados e transladados para o Monumento aos Pracinhas no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Mas Collor fez questão de inaugurar na entrada do monumento em Pistoia uma placa de bronze, celebrando “o primeiro presidente brasileiro a homenagear os soldados brasileiros aqui sepultados”. Foi aí que entrou em ação o nosso querido “Salmão”, segundo me relatou o jornalista e cineasta italiano Andreas Palladino.
Guidotti e Andreas fizeram uma visita, em 1992, ao Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia. Quando viram a placa deixada por Collor, Guidotti não resistiu e com aquela caneta de tinta vermelha que por não se apagar facilmente fica exposta por longo tempo, escreveu:
FORA COLLOR!
Andreas lembrou da história agora, por ocasião dos protestos contra a recente e turbulenta passagem de Bolsonaro pela Itália, com distribuição de porrada em manifestantes e jornalistas que perguntavam.
– Ele era padre, carismático, sério, mas só quem conhece a “molecagem toscana” e a molecagem do bairro de Aparecida pode entender o gesto, revelador de sua combatividade – diz Astrid Lima, amazonense, casada com Andreas.
A palavra moleque tem sua origem na língua quimbundo: mu´leke. Registrada por Yeda Pessoa de Castro em “Falares Africanos na Bahia – Um vocabulário afro-brasileiro”, designa “menino, garoto, rapaz”, e como adjetivo “divertido, pilhérico, travesso”. Incorporada ao português do Brasil, significa menino irrequieto, traquinas, brincalhão, sapeca, gozador. O preconceito contra os negros escravizados conferiu, porém, um significado pejorativo à palavra. Chamar um menino branco de moleque era altamente ofensivo. No bairro de Aparecida é um elogio relacionado à alegria de viver.
Dialeto toscano
Não sei qual o equivalente de “moleque” no dialeto toscano, que é a base do idioma italiano. Língua literária na península itálica, o toscano foi amplamente usado nos escritos dos clássicos: Dante Alighieri, Petrarca, Boccaccio, Maquiavel. De qualquer forma, o protesto do padre Guidotti foi o de um “moleque do bem”.
Esse “moleque santo” passou seus últimos anos no Seminário de Pistoia, onde foi morrendo bem devagar, devagarzinho, aproveitando para ir ficando um pouco mais entre nós, demorando a se despedir como o Tata Juancho da canção do argentino Jorge Cafrune, embora já não pudesse mais comer la tripa ala florentina regada a vinho Chianti ou a crostini di fegatini, que é uma forma de dar sentido à vida, como comprovou um dia dona Elisa em visita à Pistoia.
Se ele, vivo, tivesse presenciado a visita de Jair Bolsonaro ao cemitério militar, no Dia de Finados, acompanhado do fascista Matteo Salvini, dirigente da Liga Norte, partido de ultradireita, o que faria? Salvini e Bolsonaro representam tudo aquilo contra o qual lutaram os pracinhas brasileiros da FEB. Deixo à imaginação de eventuais leitores o tipo de molecagem que Guidotti teria feito em nome de todos nós contra a dupla fascista e genocida. Efetivamente, faltou alguém em Pistoia.
Referências:
1.Ugo Feraci: Storia di un prete controcorrente. Addio a don Umberto Guidotti che ha dedicato quarant’anni alla missione. 19/10/2021
2.José Ricardo Wendling: Padre Humberto Guidotti: Profeta dos Direitos Humanos. 12/10/2021
3.Elvira França. Da Itália para o Amazonas: Nádia Vettori na missão da Pastoral da Criança de transformar vidas. 26/01/2018
4. Andreas Palladino e Astrid Lima– Depoimento oral via WhatsApp. 05/11/2021