FALTA UM CONTÍNUO NO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES

Por José Ribamar Bessa Freire

No Ministério dos Transportes trabalhava um funcionário, um contínuo, que era lotado na Assessoria de Comunicação. Seu nome, não lembro mais. Ele tinha o quê? Uns 60 anos? Era por ai, um sexagenário. Trajava sempre um paletó surrado, gravata estampada, cultivava um bigodinho tipo “tô na roça”e penteava o cabelo ondulado para trás, ensopado com muita brilhantina ou endurecido pelo gel. Seu jeito de andar era meio saltitante, que nem papagaio na areia quente.

Numa época em que não existia internet, sua função era percorrer diariamente as redações dos jornais do Rio de Janeiro. Entregava os press-releases e o material jornalístico de duvidoso conteúdo informativo, fotos e propaganda, muita propaganda, às vezes acompanhada de brindes promocionais, exaltando a figura de um eterno aspirante ao cargo de presidente da República, o ministro dos Transportes, Mário Andreazza, a quem ele só chamava de “Garoto”.

O contínuo defendia uma causa inglória, é verdade, mas a gente simpatizava com seu jeitão folclórico, com sua cara de fome. Quando entrava na redação, sempre cerimonioso, com o malote na mão, ia de mesa em mesa cumprimentando os jornalistas presentes, a quem dava tratamento personalizado. Fazia questão de apertar a mão de cada um de nós, dizendo: “O Garoto está entusiasmado com tua atuação”. Ou “o Garoto mandou te parabenizar”. Ou ainda “o Garoto gosta do que você escreve”.

De repente, para provocá-lo, alguém gritava às suas costas – “O Garoto é corrupto”. Ele se virava com agilidade e defendia o patrão: “Não diga isso! O Garoto é honrado”. Detrás dele, outro repetia: “O Garoto é ladrão”. Ele, saltitante, girava nos calcanhares: “O Garoto não rouba nem um centavo”. A brincadeira prosseguia por alguns minutos, divertindo a redação e deixando o contínuo louco da vida.

Ele era um espécime raro. Talvez fosse o único ser vivo no planeta que acreditava na honestidade do ministro. Mais: estava absolutamente convencido de que sua forma simpática de tratar os jornalistas e o malote que entregava religiosamente aos jornais eram responsáveis pela cobertura favorável a Andreazza. E não as verbas publicitárias.

Vale um andreazza

Testemunhei o fato em dois jornais, nos quais fui repórter: O Paiz, em 1968, e o Correio da Manhã, em 1969, ambos comprometidos com o Garoto, o coronel Mário David Andreazza, ministro dos Transportes por oito anos (1967 a 1974), em dois governos: do marechal Costa e Silva e do general Médici. Seria interessante conferir a cobertura jornalística dada às várias obras faraônicas da época: o asfaltamento da Belém-Brasília, a abertura da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém, a construção da ponte Rio-Niterói e a recuperação de ferrovias, tudo cheirando a press release.

O que os jornalistas falavam nas redações não se escrevia nos jornais. A corrupção no Ministério dos Transportes denunciada, entre outros, por Carlos Lacerda, não era fiscalizada. O PAIZ, ressuscitado pelo jornalista Hedyl Rodrigues Vale, em 1968, fazia oposição à ditadura em suas páginas internas, mas dedicava a manchete quase sempre ao sorridente Andreazza, que aparecia em fotos cortando fitas, inaugurando obras. O combativo Correio da Manhã, já decadente, arrendado pelos empreiteiros, também fingia que o Garoto era probo.

Andreazza contava com o apoio de vários jornais e de quase todas as construtoras. Não desistiu de ser presidente nem no governo Figueiredo (1979-1985), quando foi ministro do Interior e manejava recursos bilionários dos programas habitacionais como o Promorar. Era tão guloso por verbas que o então ministro da Fazenda, seu colega Mário Henrique Simonsen, chegou a propor a criação de uma nova moeda:

-“Ele pede tanto dinheiro, com tanta insistência e com tanta freqüência, que sugeri a criação de uma unidade monetária chamada andreazza.Um andreazza (A$1,00) valeria um trilhão de cruzeiros (Cr$ 1.000.000.000.000). Não muda nada, mas pelo menos a gente lida com menos zeros”.

O Ministério dos Transportes sempre foi uma mina de ouro e, ao mesmo tempo, um covil de Ali Baba. Foi assim desde o Barão de Mauá, no Império, quando ainda nem sequer existia com esse nome. Permaneceu fiel a essa tradição o ministro Alfredo Pereira Nascimento, mais conhecido no Amazonas como Cabo Pereira, nome que tinha no quartel, quando fez o serviço militar. Um andreazza valia um trilhão de cruzeiros. E hoje, um pereira vale quantos reais?

O Garoto é corrupto

O ex-cabo da Aeronáutica, nascido em Pau-dos-Ferros (RN), fez sua carreira artística no Amazonas. Aprendeu seu ofício com Amazonino Mendes (PTB vixe, vixe), de quem foi tesoureiro de campanha, uma versão regional de PC Farias. Quando descobriu que o chefe adorava café regional, passou a servi-lo, pessoalmente, com tucumãs que ele mesmo descascava, pupunhas e tapioquinhas. Ganhou sua confiança. “Amazonino é um descobridor de novos talentos” – escreveu na época o então senador João Braga Junior, referindo-se a Alfredo Nascimento e a Eduardo Braga, que pertenciam ao mesmo grupo.

Ex-interventor na Prefeitura de Manaus, ex-superintendente da Suframa, duas vezes secretário de Fazenda, o Cabo Pereira nunca chegou a tecer laços afetivos com a cidade que para ele não passava de um imenso canteiro de obras loteado entre as empreiteiras. Foi lá que Lula o buscou, no final de 2003, para ser ministro dos Transportes, não necessariamente pelo seu talento, mas pela bancada de seu partido (PL vixe, vixe e depois PR – vixe, vixe) no Congresso Nacional.

– “Tenho certeza que nem mereço este lugar que vou ocupar. Deus tem me dado muito mais do que eu preciso em todos os segmentos de minha vida” – disse lucidamente o Cabo Pereira no seu discurso de despedida, em Manaus, antes de ir tomar posse em Brasília, à frente de um Ministério, que para 2011 previu investimentos de R$ 17 bilhões nas rodovias federais. No ano anterior, o orçamento foi de 12,5 bilhões. Realmente Deus lhe deu mais do que precisava.

Agora, depois de oito anos, com as estradas esburacadas causando acidentes mortais, o patrimônio rodoviário e hidroviário sucateados, o Cabo Pereira deixa o Ministério envolvido em denúncias de corrupção, superfaturamento de obras e cobrança de comissões para o caixa dois. O Ministério Público Federal no Amazonas investiga pistas de enriquecimento ilícito de seu filho, Gustavo Morais Pereira, de 27 anos, cuja empresa criada em 2005 com capital de R$ 60 mil, teve seu patrimônio elevado para R$ 52 milhões em cinco anos. Tal pai, tal filho.

Com a correção monetária da moeda andreazza proposta por Simonsen, vale perguntar: quantos reais vale um pereira hoje? Os centavos podem ser contabilizados em pereirinhas. Podemos especular ainda quantos maggis valerão os reais de amanhã, se mudarem os nomes no Ministério, mas permanecerem os mesmos esquemas.

– O Garoto é corrupto – ecoam as manchetes dos jornais. As denúncias da mídia – e não a fiscalização dos órgãos controladores do governo, como devia ser – identificam quem é subornado, mas protegem os nomes de quem suborna. As empreiteiras e construtoras são poupadas como na época de Andreazza. Se o Ministério dos Transportes reintegrar o contínuo aposentado da Assessoria de Comunicação, quem sabe, os próximos escândalos não virão à tona.