Republico abaixo a entrevista do Ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça, concedida ao Pedro Canário, do CONJUR. Como sempre, de forma didática e objetiva, o ministro aborda a questão da burocratização no Brasil com muita propriedade e mostra a necessidade de quebrarmos muitos paradigmas que hoje emperram a administração pública brasileira desde o mais alto escalão até o menor município brasileiro.
Votos de sucesso à Comissão e que suas propostas sejam implantadas. Boa leitura.
Por Pedro Canário, do CONJUR:
Não é segredo que para promover o desenvolvimento de um país é preciso evitar que o Estado atrapalhe a vida dos cidadãos. Também não é segredo que o Brasil é conhecido por exigir de seus habitantes uma infinidade de documentos com objetivos tão banais quanto singelos, às vezes surreais, como a comprovação da própria existência.
Para analisar o quanto disso é realmente necessário e o quanto disso existe apenas por inércia dos poderes, o Senado convocou uma Comissão de Juristas para a Desburocratização do Brasil. Criada em outubro deste ano, a comissão tem a tarefa de propor, em seis meses, anteprojeto de lei que vise diminuir a burocracia estatal e facilitar o acesso do cidadão ao Estado. É um time cheio de nomes de incontestável carreira e importância nos mundos jurídico e acadêmico, presidido pelo ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça.
Um dos mais antigos membros do STJ, Campbell Marques já esteve em diversos lados do balcão. Foi procurador-geral de Justiça do Amazonas antes de ser nomeado ministro pelo quinto constitucional do Ministério Público. Também foi secretário de Segurança; de Controle, Ética e Transparência; e de Justiça do Amazonas.
Portanto, conhece bem as amarras que o Estado impõe ao cidadão e às empresas. “A enorme dificuldade na luta contra a burocratização é a necessidade de quebra de paradigmas, mudanças culturais que devem ser protagonizadas pelo Estado e, no particular, pelo Judiciário”, afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico.
Em artigo publicado há um mês, o ministro conta que o termo burocracia nasceu na França, no século XVIII, para designar o poder do bureau, em referência às mesas dos agentes do Estado. Hoje, explica, burocracia é a estrutura que faz o cidadão “mendigar direitos que a Constituição e as leis do país lhe asseguram”.
O ministro está à frente de uma tarefa árdua. Como ele mesmo define, desburocratização é “qualquer forma de encurtamento do acesso do cidadão a um serviço público e de otimização do princípio da eficiência por parte do Estado”.
A comissão terá relatoria do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e composta por diversos notáveis, como o professor de Direito Civil da USP Otavio Luiz Rodrigues Jr; o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel; o professor Ives Gandra, um dos autores do capítulo de Direito Tributário da Constituição Federal; e o ex-ministro da Desburocratização João Geraldo Piquet Carneiro.
A presença de Piquet Carneiro é vista pelo ministro Mauro Cambpell como fundamental. Mostra que as ideias do antigo Ministério da Desburocratização, criado e chefiado pelo ministro Helio Beltrão em 1979, serão incorporadas. O espírito era, em plena ditadura militar, “reduzir a interferência do governo nas atividades do cidadão”.
Vieram da Desburocratização os antigos juizados de pequenas causas, hoje Juizados Especiais, e o Estatuto da Microempresa, por exemplo. Em 1986, com o fim do regime militar, a pasta foi incorporada ao Ministério da Administração. Piquet Carneiro é hoje presidente do Instituto Helio Beltrão.
Leia a entrevista:
ConJur – O que se entende por “desburocratização”?
Mauro Campbell Marques – Hélio Beltrão já dizia que até o referido termo causava complicações aos locutores de TV e rádio diante da dificuldade da pronúncia. Mas, efetiva e resumidamente, penso que qualquer forma de encurtamento do acesso do cidadão a um serviço público e de otimização do princípio da eficiência por parte do Estado é desburocratizar.
ConJur –Quem perde e quem ganha com a burocratização das atividades e dos negócios na vida pública e privada?
Mauro Campbell – Excetuado o fomento à corrupção sob várias formas, estes sim beneficiários diretos e indiretos da burocracia, todos perdem com ela. A começar pelo cidadão que ainda se constrange com pedidos de autenticação de sua própria existência ou com o preenchimento de cadastros e mais cadastros, cujos dados vindicados já estão devidamente atualizados nos bancos de dados de quem lhes cobra, o Estado.
ConJur – Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, o senhor afirma que a burocratização é “efeito de uma apropriação da máquina estatal” ou “da intenção de criar dificuldades para vender facilidades”. O Congresso Nacional está preparado ou disposto a enfrentar esses interesses?
Mauro Campbell – Com certeza o Congresso demonstrou tal preocupação e, sobretudo, vontade política de lutar contra esse problema ao instituir a Comissão Especial de Juristas que presido.
ConJur– O Poder Judiciário é reputado como o setor mais burocrático da sociedade. A fama é justa?
Mauro Campbell – A fama não é injusta, mas a burocracia judicial é fruto de problemas orgânicos que somente agora buscamos solucionar. A enorme dificuldade na luta contra a burocratização é a necessidade de quebra de paradigmas, mudanças culturais que devem ser protagonizadas pelo Estado e, no particular, pelo Judiciário. Os mecanismos de controle são sempre reativos e não buscam se antecipar à desobstrução dos canais de tramitação processual. Não podemos ser reducionistas, pois nós, juízes, já demos prova de que podemos fazer de nossa atividade jurisdicional um meio condutor de mudanças essenciais à vida republicana.
ConJur – O senhor não teme que a Comissão de Juristas se deixe envolver por questões diversas e se disperse sem deixar um resultado efetivo como legado de seu trabalho?
Mauro Campbell – É óbvio que esse temor existe diante do grande afluxo de queixas e estudos nessa área que nos chegam a todo instante. Confio, porém, na grandeza e, sobretudo, no esmero já sobejado na história de vida de cada um dos integrantes da Comissão. Mas, se necessário, conduziremos o debate com a objetividade que a desburocratização nos cobra.
ConJur – Já existem ideias concretas para se atacar os entraves burocráticos do sistema de Justiça? E dos cartórios? Tais organizações estão no foco da Comissão de Juristas que o senhor preside?
Mauro Cambpell – Há, sim, vários temas nesse quinhão burocrático que pretendemos estudar e propor soluções e não abdicaremos da oitiva das entidades representativas do setor, o que, aliás, já temos feito. Só não acredito que o assembleísmo e a realização de encontros ou reuniões mais pirotécnicos do que eficazes possam substituir o trabalho de estudo e seleção de propostas que nos sejam encaminhadas por canais igualmente democráticos. Esse é, aliás, um pensamento unânime dos membros da Comissão.
ConJur – O mote será o mesmo do antigo programa do ministro Helio Beltrão, no sentido de “reduzir a interferência do governo na atividade do cidadão”?
Mauro Cambpell – Com certeza esse será um dos motes. Avançaremos, no entanto, para que mesmo nos instantes nos quais o Estado tenha de intervir, ele o faça com a mesma sanha profissional com que costuma agir para fiscalizar e punir. Dito de outro modo, caberá ao Estado demonstrar que é eficiente para servir e não para travar a vida do cidadão ou da empresa.
ConJur – As ideias do ex-ministro Helio Beltrão serão aproveitadas? Há preocupação em se recuperar o trabalho dos anos 1970-1980 sobre desburocratização?
Mauro Cambpell – É um dos objetivos e não é sem propósito que faz parte da Comissão e é seu vice-presidente o professor Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão. Ele constantemente traz-nos à lembrança os ensinamentos e as soluções propostas pelo doutor Hélio Beltrão.
ConJur – É possível saber de que maneira exigências burocráticas atrapalham o funcionamento de varas e tribunais?
Mauro Campbell – Lógico que é. Basta ouvirmos o que diz o cidadão que busca acessar os cartórios judiciais de primeiro grau de jurisdição. A começar pelo temor reverencial que ainda impera em grande parte dos longínquos rincões do nosso país. As estruturas administrativas da jurisdição ordinária ainda são muito carentes, a par dos esforços envidados pelos tribunais. Temos de lançar mão de mecanismos tecnológicos e de bancos de dados já disponíveis para que o acesso ao Judiciário seja mais profissional e, quem sabe, cheguemos ao ponto de efetuar triagens capazes de induzir a uma desjudicialização crescente. Deve partir do Judiciário a sugestão de receber e solucionar com celeridade somente os litígios que devam ser submetidos ao Estado-Juiz, oferecendo ao jurisdicionado mecanismos alternativos de solução como a arbitragem e a mediação. Ou mesmo exercendo, como preconizou Hélio Beltrão, a rápida composição entre as partes.
ConJur – Foi pensada alguma forma de interação da sociedade civil com os trabalhos da Comissão, ao estilo de audiências públicas?
Mauro Campbell – Em virtude da exiguidade do tempo oferecido à Comissão, optamos por franquear o acesso pessoal ou virtual com as propostas e eventuais soluções a fim de otimizar os trabalhos, sem embargo de que não se afasta tal possibilidade.
ConJur – O que sua experiência de membro do Ministério Público de um estado do Norte do Brasil, de secretário do governo do Amazonas e, posteriormente, de um integrante do STJ pode contribuir para a Comissão de Juristas da Desburocratização?
Mauro Campbell – O fato de ter servido ao Ministério Público, ao Executivo e, agora, ao Judiciário, por certo me dá uma visão privilegiada e capaz de lançar críticas e sugestões a mais. Mas os demais membros da Comissão possuem gabarito intelectual e experiências iguais ou bem melhores que as minhas, para conforto nosso e convicção do êxito dos trabalhos dela. Como servidor público vocacionado, sempre busquei ouvir as dificuldades da população que buscava ter acesso aos serviços que eu devia prestar. Não para formar banco de dados desses reclamos, mas para dar soluções efetivas a eles, procurando quebrar e extinguir o temor reverencial à autoridade dos cargos. Não é tarefa fácil, mas é factível, sim. Basta que a iniciativa parta de quem está do lado do balcão estatal. A vida, no entanto, não permite termos ilusões. Os excessos burocráticos são tão antigos quanto o Brasil. Disso faz prova o Sermão 140 do padre Antônio Vieira, quando ele dizia que nos despachos era comum vir o advérbio “logo” para que subissem ou descessem os autos e processos com rapidez. O problema é que “estes logos quão logos são, quanto tardam e quanto duram!” Não temos ilusões. Mas, se alguns “longos” se tornarem um “logo” na administração, teremos honrado a confiança em nós depositada pelo povo brasileiro, que conhece na alma os malefícios da burocratização. Desde os tempos coloniais!
Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.