Por Sandro Vaia
O governo quer instalar uma Comissão da Verdade para apurar as violações aos direitos humanos durante a ditadura militar e todos os gatos já arrepiaram os pelos das costas.Os gatos da esquerda não querem que a Comissão apure as verdades dos seus guerrilheiros e os gatos da direita acham que tudo não passa de revanchismo.
Não é um bom começo para um trabalho sereno de uma comissão serena.
O jornal “O Globo” publicou a notícia sobre um documento de militares contra a instalação da comissão; se confirmada a sua existência, esse documento configuraria uma insubordinação, ou no mínimo um ato de indisciplina de uma corporação submetida ao comando da presidência da República.Já “O Estado de S.Paulo”, no dia seguinte, também noticiou a existência do documento,mas o atribuiu à assessoria parlamentar do Exército,que estaria respondendo protocolarmente a uma consulta da assessoria parlamentar do Ministério da Defesa.
Claro é que, seja de quem for, o documento expressa a opinião das Forças Armadas.Mas é evidente que do ponto de vista formal, se for mesmo da assessoria parlamentar, seria difícil enquadrá-lo como quebra de hierarquia ou transgressão disciplinar, uma vez que está expressando uma opinião que lhe teria sido solicitada.
O documento diz que a instalação da Comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão” ,que vai abrir “uma ferida na amálgama nacional”, e que vai servir para “promover retaliações políticas”.
Opiniões fortes, consistentes e pertinentes, sendo assinadas por uma assessoria parlamentar, mas inteiramente inapropriadas se fossem assinadas pelo comando da corporação.Há realmente uma sutil diferença formal entre as duas situações.Sutil mas fundamental.
O fato é que a instalação de uma Comissão da Verdade, feita mantendo-se a observância à Lei da Anistia, já ratificada por decisão do Supremo Tribunal Federal, e destinada à rigorosa apuração factual, sem caráter punitivo, envolvendo igualmente as partes em disputa, seria uma contribuição inestimável, neutra e científica à História do País.
O problema é que os fantasmas do passado são mais fortes do que a razão. A indignidade da tortura nos quartéis, devidamente execrada e condenada pela sociedade, é mais forte para as vítimas e seus familiares do que o assassinato de alguns tantos inocentes pelos guerrilheiros em armas que queriam derrubar o governo opressor? Quem mede a dor de cada um? Quem determina com exatidão de onde partiu a primeira bala?
É um período da História do País ligado às paixões e não à racionalidade.Haverá alguém capaz de enfiar o bisturi na ferida ainda latente sem arrancar gritos de vindita dos que ficaram com a guarda da memória das vítimas?
A transparência histórica talvez admita, ou até mesmo precise dessa última revisão.O País tem o direito de saber o que aconteceu nesse período histórico,e como aconteceu.Mas se tudo for transformado num palco de ressentimentos e revanchismos, o Brasil tornará a perder, como já perdeu nos anos de chumbo.
Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez.. E.mail: svaia@uol.com.br