Extinção do Carf é algo fora de propósito, diz ex-secretário da Receita

Da VEJA.COM:

Everardo Maciel defende melhorias em tribunal da Receita com o fim da estrutura paritária e promoção de concursos públicos.

Nas últimas duas semanas, desde que começou a fase pública da Operação Zelotes, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que funciona como uma espécie de tribunal da Receita Federal, teve sua atuação colocada em xeque. A investigação de um suposto esquema de corrupção criado no órgão para anular ou reduzir multas aplicadas a empresas motivou o debate sobre como conduzir mudanças para aperfeiçoar a instituição. O Ministério da Fazenda chegou a instituir, inclusive, um grupo de trabalho para debater alternativas de melhorias.

Outra possibilidade, mais radical, foi levantada pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), que defendeu a erradicação do Carf. Na avaliação do ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, a ideia é tão absurda que “não chega nem a estar errada”. “É tão fora de propósito que sequer tem nexo. Digo com absoluta convicção: não há um tributarista que tenha a insensatez de propor coisa desse tipo”, afirmou, em entrevista ao site de VEJA.

Uma das mudanças propostas por Maciel para melhorar a estrutura administrativa fiscal do país é o fim da estrutura paritária do Carf – atualmente composto por metade de representantes do Fisco e metade dos contribuintes. Para que haja uma maior independência, ele defende a promoção de concursos públicos, com funcionários remunerados e com dedicação exclusiva. “Defendo a profissionalização da justiça administrativa de segunda instância”, reforçou. Confira trechos da entrevista.

O Carf precisa de mudanças profundas? Temo muito as chamadas leis de ocasião. No Brasil, para cada problema que sugr, alguém parece ter uma fórmula mágica que consiste em uma nova lei. Portanto, sou muito cuidadoso. O que não significa dizer que o processo administrativo fiscal – e não o Carf em si – não deva ser objeto de uma reflexão, e, se for o caso, de mudanças. O Carf é apenas a segunda instância da administração fiscal federal. Eu me refiro a toda estrutura de julgamento administrativo dos fiscos federal, estaduais e municipais.

Quais sãos as principais falhas do processo administrativo fiscal? Primeiramente, a estrutura do Carf e das demais segundas instâncias de julgamento administrativo fiscal no país. Elas não deveriam ter natureza paritária. Isso porque esse modelo implica na existência de julgadores que não são do Estado, que assumem em caráter não profissional. É uma participação que não retrata a realidade, pois são profissionais – advogados, contadores – que trabalham sem remuneração. É uma atividade que passa a ser acessória, quando deveria ser de tempo integral. Órgãos de julgamento com composição paritária são herança do Estado Novo. Não consigo compreender isso. O que eu imagino como conveniente para a segunda instância da União, de Estados e municípios é que os órgãos sejam formados por julgadores concursados para esta finalidade. Ou seja, o ideal não é termos nem representantes do Fisco, nem do contribuinte, mas de julgadores administrativos. Assim como funcionou em Pernambuco nos anos 1970.

Foi uma experiência bem-sucedida? Funcionou muito bem. Pois dessa forma você assegura a independência de convicção, um trabalho de tempo integral e dedicação exclusiva, e, portanto, mais profissional. Defendo a profissionalização da justiça administrativa de segunda instância.

A promoção de concursos garantiria o pleno funcionamento da entidade? Depende do grau de exigência. A pessoa tem de ter prática como auditor fiscal. As chaves estariam nos pré-requisitos, que deveriam incluir ainda critérios como bacharelado em Direito, experiência na área, entre outras coisas. Em Pernambuco, quando fui secretário da Fazenda, a equipe era extremamente qualificada. Nem todos tinham sido auditores, mas havia professores de direito, com profundo conhecimento do assunto. Um dos examinadores da época era Ives Gandra. Concluindo, é possível formar uma equipe boa com concurso qualificado e fazer, depois, programas de treinamento para qualificar pessoas no Brasil inteiro.

A ideia vem ao encontro da defesa do Levy, de ter pessoas com ‘mais currículo’ no Carf? Esta não é a questão. O Carf tem uma boa tradição técnica, muito qualificada. As pessoas são selecionadas, elas se submetem a um exame por uma banca pesadíssima formada pelos mais importantes tributaristas do Brasil. Não estamos falando da qualidade técnica, mas do tipo de estrutura, que deve ser mais profissional, com dedicação exclusiva e remuneração.

A extinção do Carf é uma possibilidade viável? Como dizia Wolfgan Pauli, austríaco, prêmio Nobel de Física: isso sequer está errado. É tão absurdo que não chega nem a estar errado. É tão fora de propósito que sequer tem nexo. Digo com absoluta convicção: não há um tributarista que tenha a insensatez de propor coisa desse tipo. O que tiver, terá o repúdio unânime, pela falta de nexo da ideia. O principal prejudicado seria o contribuinte, porque a justiça administrativa serve para depurar os assuntos para que, quando chegarem no Judiciário, já tenha sido tratado por especialistas. Precisaria haver uma Justiça dez vezes maior do que a que temos. A nossa Justiça é das mais sobrecarregadas do mundo. Todos os países que tem administração fiscal estruturada, tem justiça administrativa. No Brasil, ela existe, mas data dos anos 1920.

O que, então, precisa ser mudar? A primeira instância deveria ter caráter meramente de revisão de elementos fáticos, essencialmente técnica, e não de direito. Na segunda instância as decisões deveriam representar acórdãos com a possibilidade de edição de súmulas vinculantes para a administração. Como é no Judiciário, em que os tribunais superiores podem editar súmulas vinculantes [mecanismo que obriga juízes de todos os tribunais a seguirem o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre determinado assunto com jurisprudência consolidada]. A matéria tributária é intrinsicamente complexa e, por isso, é fora de propósito imaginar que ela seja apreciada, em um primeiro momento, pela Justiça comum. É impossível. A decisão deveria chegar devidamente estruturada na Justiça comum. As provas constituídas na Justiça administrativa deveriam ser integralmente aproveitadas pelo Judiciário. Na França, por exemplo, é assim: há uma continuidade processual que dá agilidade e rapidez. Se conseguíssemos alcançar os pontos citados, teríamos um enorme progresso.

A ausência de representantes de contribuintes no grupo de trabalho proposto pela Fazenda para discutir mudanças no Carf não agradou entidades em defesa da advocacia. Como você avalia a composição do grupo? O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não tem competência para determinar que uma pessoa que não é servidor público passe a integrar um grupo de trabalho. Mas por que essas entidades não constituem seus próprios grupos de trabalho para apresentar proposições? Precisa da tutela do serviço público para tomar essa iniciativa? Qualquer pessoa que tenha capacidade de produzir soluções pode fazer isso.