A cobertura da grande imprensa nacional sobre o escândalo das escutas ilegais no Reino Unido é um verdadeiro diálogo surdo. Não há sequer uma linha de auto-crítica e reflexão sobre o que deve mudar no comportamento da mídia brasileira. O caso é acompanhado como se fosse exclusivamente um problema de um jornal britânico. Mas é possível tirar lições valiosas do que acontece lá fora, especialmente no que se refere à ideia de autorregulação do trabalho jornalístico.
O Reino Unido está às voltas com os excessos de sua imprensa —especialmente os tablóides— há décadas. Já se tentou várias fórmulas para coibir essas práticas, mas os jornais reincidem nas infrações ao código de conduta dos jornalistas, usando da invasão à privacidade para publicar atrativos de venda.
A descoberta de que o jornal News of the World, de Rupert Murdoch, utilizou-se de artifícios ilegais como escutas não autorizadas judicialmente aprofundou e disseminou o mal-estar com o comportamento da mídia britânica.
A discussão voltou-se para a regulação dos meios de comunicação e a concentração do setor nas mãos de poucos e poderosos conglomerados. A imprensa no Reino Unido é objeto de autorregulação há mais de 50 anos. A primeira experiência nesse sentido foi a criação de um conselho voluntário de imprensa, o Press Council, em 1953.
Na década de 1980, apesar da atuação do conselho, o excesso dos tablóides sensacionalistas foi questionado no Parlamento.
No entanto, ao invés de novos controles legais, a opção foi por criar uma nova Comissão Queixas da Imprensa (PCC, sigla em inglês para Press Complaints Commission). Os contornos da comissão a caracterizam como um tipo de ouvidoria, tendo em sua composição jornalistas e representantes da sociedade civil, substituindo o antigo conselho de perfil mais classista.
A missão da PCC é defender tanto a ética jornalística, quanto a liberdade de imprensa. Nasceu da PCC a publicação de um Código de Conduta dos Editores, acordado entre jornais e revistas, documento que passou a orientar a ação dos profissionais e empresas.
Ocorre que o escândalo News of the World evidenciou que esse modelo está esgotado. A PCC revelou-se frágil em sua tarefa de coibir as práticas dos tablóides. Alguns apontam como razão principal o fato de a comissão não ter prerrogativa para impor multas aos órgãos de imprensa infratores, tampouco para punir profissionais. Sua atuação ficava, assim, relegada ao efeito moral.
Vale notar também que a presença no conselho da PCC dos poderosos publishers do Sunday Mirror, do Sunday Telegraph e do Mail on Sunday configura-se entrave a um trabalho mais eficaz de controle.
Além disso, a força de Murdoch, que detém 37% do mercado editorial britânico fora as participações em emissoras de TV aberta e a cabo, também é obstáculo.
Em suma, as bases da regulação da imprensa estão em xeque. “A forma como a imprensa está sendo regulada hoje não está funcionando”, sentenciou David Cameron, o primeiro-ministro britânico.
De fato, não está funcionando. E isso não é só no exterior, é também em solo brasileiro. Aqui, a grande imprensa sofre urticária toda vez que se fala em regular o trabalho jornalístico. O discurso adotado é o do alarmismo contra supostas práticas que “atentam contra a liberdade de imprensa”, discurso inclusive que revela uso da defesa da liberdade de imprensa e da ausência de regulação para garantir o atual status quo.
A defesa veemente que se deve fazer é a de construir um marco legal que possa, ao mesmo tempo, garantir a liberdade de expressão e de informação jornalística, uma conquista valiosa do processo de redemocratização do país, preservar identidades e reputações e garantir a concorrência, evitando, assim, o monopólio e seu uso com fins políticos de poder, como aconteceu com o império Murdoch na Austrália, EUA e Grã-Bretanha.
Os grandes veículos propõem a autorregulação como alternativa a uma nova legislação de mídia. Mas o Reino Unido é a prova cabal de que essa ideia não funciona, é como deixar a raposa tomando conta do galinheiro —relatório de 2009 da PCC sobre o News of the World eximiu o jornal das acusações de práticas ilegais.
Lá, como aqui, o caminho é um só: estabelecer mecanismos que ampliem as responsabilidades de profissionais e veículos de comunicação quanto ao dever de informar — e, claro, com punições severas.
A proposta de autorregulação da imprensa tem limites facilmente ultrapassados. Se demorarmos a avançar nessa agenda, arriscamos colher frutos tão amargos quanto os britânicos têm colhido.
Lá, como aqui, o assunto merece a atenção dos cidadãos, dos legisladores, da academia, dos profissionais de imprensa e dos veículos de comunicação. Voltaremos ao tema.
José Dirceu, 65, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT
Melhor os culpados do jornal ingles errarem e pagarem nos tribunais do que qualquer proposta de regular a mídia impressa.