“En la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”. Paulo Leminski
Eles fizeram aquilo que vêm fazendo há mais de 500 anos: (r)existir. Nesta semana, no Equador, em Roraima e no Vaticano, usaram todas as armas possíveis: pedras, poemas, orações, justamente no momento em que uma parte do mundo celebra o 12 de outubro de 1492, quando três caravelas com 90 homens aportaram em uma das ilhas Bahamas, ao norte de Cuba. O almirante Cristóvão Colombo escreveu em seu Diário:
– [Os habitantes da ilha] “todos, sem exceção, são de boa estatura e fazem gestos bonitos, elegantes, muito bem-feitos, os cabelos grossos como crinas de cavalo (…) e se pintam de preto e vermelho e são da cor dos canários, nem negros, nem brancos. Não andam com armas… (…) E foi deslumbrante ver o arvoredo, o frescor das folhagens, a água cristalina, as aves e a amenidade do clima. Vontade tenho de não mais sair daqui”.
Não saíram até hoje, mas destruiram a natureza admirada por Colombo. Continuam fazendo aquilo que vêm fazendo há mais de 500 anos: reprimir e predar. Que o digam os indígenas do Equador que completam no sábado (12), onze dias de manifestações, com a morte de sete pessoas, entre as quais o líder Inocencio Tucumbi, dirigente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), assassinado numa emboscada por policiais a cavalo.
Cadê aquele “arvoredo deslumbrante”? Contra a destruição do “frescor das folhagens”, a poluição dos rios e a alteração do clima ameno, sete líderes indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) iniciam na próxima quinta-feira (17), peregrinação durante mais de um mês por 12 países da Europa para denunciar empresas europeias e norte-americanas, entre bancos, madeireiras e fabricantes de acessórios, que financiam a devastação da Amazônia, além de empresas brasileiras que gozam de impunidade pelos crimes ambientais.
Manifestações nos Andes
A resistência continental aflorou com mais virulência na nação andina com um protagonismo decisivo das mulheres. Uma amiga equatoriana, Gabriela Bernal, que prepara tese de doutorado sobre educação indígena, viajou por seu país neste último ano, visitando comunidades, conversando com jovens, crianças, mulheres. Ela me escreve:
– “Em todas partes vi mães chorarem por não poderem enviar seus filhos à escola, porque fecharam milhares de salas de aula sobretudo no meio rural. Havia raiva, indignação, impotência, fome. As pessoas migraram para as cidades, no campo só ficaram os mais pobres dos pobres. E agora sobem o preço dos combustíveis”.
O preço da gasolina e do diesel subiu, efetivamente, até 123% como contrapartida ao acordo assinado pelo governo de Lenin Moreno com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ele obteve um empréstimo de US$ 4,2 bilhões ao país, mas quem vai pagar é a população, o que provocou manifestações em Quito e outras cidades, com participação ativa dos índios que atenderam apelo da Conaie.
O balanço até esta manhã de sábado (12/10) mostra o tamanho do prejuízo em números: 7 mortos, entre os quais um recém-nascido, 83 desaparecidos entre eles 47 menores de idade, 95 feridos graves, cerca de 500 feridos leves, mais de 800 presos e 57 jornalistas agredidos pela polícia. E por aí vai.
Da mesma forma que Jair Bolsonaro declarou que o petróleo que contaminou as praias do Nordeste é resultado de ação criminosa da Venezuela, sem exibir qualquer prova, Lenin Moreno atribui a Nicolás Maduro a organização dos protestos no Equador. Não querem olhar o próprio rabo. Maduro, coitado, que sequer consegue resolver seus problemas internos, é satanizado como comandante de uma superpotência capaz de dominar toda a América Latina. Quem ainda acredita nessas patranhas, que era como se chamava antigamente as fake news? Só os bobinhos que se assustam com fantasmas.
No caso do Equador, Lenin Moreno aponta como auxiliar do Maduro o ex-presidente Rafael Correa. Mentira! “Os indígenas não querem o regresso de Correa. Nas manifestações as fotos mostram como puseram para correr os correligionários do ex-presidente” – escreve Gabriela.
Poesia em Roraima
Já em Roraima, as lideranças indígenas publicaram um dossiê contestando afirmações de Jair Bolsonaro que, no início do mandato, anunciou decreto para rever a criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, prometendo dar aos índios que ali vivem “royalty e integração à sociedade”. Ele agora prepara um projeto de lei para regulamentar a pesquisa e lavra das riquezas minerais nas terras indígenas, o aproveitamento dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, com todas as consequências nefastas para o meio ambiente.
– “O direito pleno à nossa terra ancestral é justamente para permitir que possamos viver do nosso jeito e construir um futuro baseado nas nossas visões de progresso e bem estar” – responde o documento que será entregue pessoalmente por seis líderes indígenas ao Congresso Nacional, à Advocacia Geral da União (AGU) e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas a poesia também fez parte da resistência, com a indicação de um estudante wapichana, Marcelo Aleixo da Silva, classificado para a semifinal da 6ª Olimpíada de Língua Portuguesa. Aluno da 5ª série da profa. Josane Chagas na Escola Indígena Francisca Gomes da Silva, ele vai representar Roraima com seu poema sobre o tema “O lugar onde vivo”, que celebra as belezas naturais da Serra do Truarú. Estamos todos orgulhosos do menino Wapixana. Ele é um indicador de que a luta continua. Muitos indígenas se apropriam do português que convive em bilinguismo com suas línguas de origem. Manifestam competência na língua oficial do Brasil, ao contrário do uso do inglês por quem quer ser indicado embaixador do Brasil nos EUA
No Sínodo do Vaticano
Os índios estão presentes também no Sínodo da Amazônia, iniciado no domingo passado (6/10) com duração até 27 de outubro, com o objetivo de discutir “Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral na Amazônia”. O evento reúne no Vaticano 185 bispos de nove países amazônicos e peritos como o padre salesiano da etnia Tuyuka, Justino Sarmento Rezende, além das freiras Francinete Noronha (Tuyuka) e Mariluce Mesquita (Bará), entre outros.
É nesse contexto que a comitiva de sete lideranças indígenas da APIB visitará 12 países da Europa e passará por 35 cidades, começando por Roma e pelo Vaticano. Sônia Guajajara, Célia Xacriabá, Angela Kauyana, Alberto Terena, Kretã Kaingang, Elizeu Kaiowá e Dinaman Tuxá vão denunciar as agressões aos povos indígenas e ao meio ambiente pelo governo Bolsonaro, em conluio com grandes empresas.
O objetivo da jornada intitulada “Sangue Indígena: nenhuma gota a mais” é acionar a pressão externa para que o governo e as empresas do agronegócio cumpram os tratados de meio ambiente, entre eles o Acordo de Paris, a Convenção 169 e a Declaração da ONU sobre povos indígenas, dos quais o Brasil, como nação soberana, é signatário.
Viche, já ia me esquecendo. Da comitiva não participa – et pour cause – Ysani Kalapalo, “a índia de Bolsonaro”, conforme matéria assinada por Bruno Meyerfeld, correspondente do Le Monde no Brasil.
P.S. Cristovão Colombo: Diários da Descoberta da América. As quatro viagens e o testamento. Porto Alegre. L&PM Editores.1984