É urgente que potências dominantes reconheçam as novas realidades
Diante dos horrores da Segunda Guerra Mundial, os vencedores se dispuseram a criar a ONU e outras instituições internacionais para impedir as grandes conflagrações e regular, dentro do possível, certas matérias de interesse geral, como o comércio, com a Organização Mundial do Comércio, e os desequilíbrios financeiros globais e o socorro a países endividados, com o Fundo Monetário Internacional.
Outras, ainda, para promover o desenvolvimento (o Banco Mundial) ou para remediar as questões básicas dos povos em matéria de Saúde (a Organização Mundial da Saúde) e da Educação (a Unesco).
Embora longe do ideal, é inegável que essas organizações alcançaram algum progresso. Em pelo menos um ponto crucial a ONU foi vitoriosa: apesar da Guerra Fria, não se deu um choque direto entre os Estados Unidos e a União Soviética.
No período pós-Guerra Fria, tampouco se veem riscos de confronto militar entre a China e as potências ocidentais.
Ocorre, entretanto, que já se passaram mais de 50 anos da formação da ONU, e os fundamentos econômicos e políticos da ordem mundial se transformaram enormemente. Pelo menos quatro fatos significativos impõem uma revisão dessas instituições internacionais: o fim da União Soviética, a incrível expansão econômica da China, a reaparição do mundo islâmico na cena internacional e a emergência de novos polos de poder econômico e político no mundo (não apenas os Brics, mas a Turquia, o Irã, a África do Sul, a Coreia do Sul e outros países asiáticos).
Sem esquecer que Japão e Alemanha, que não têm assento no Conselho de Segurança, colocaram-se no topo da economia mundial.
No mundo ocidental, a transformação de maior significado foi a construção da União Europeia, por seu alcance político-civilizatório. Esse movimento unificador foi consequência do mesmo impulso que levou à formação da ONU: cansados de guerrear, Alemanha e França tornaram-se o sustentáculo da Comunidade Europeia, conjunto de nações cujas relações devem basear-se na solidariedade entre a Europa mais rica e a mais pobre, em um arranjo supranacional que busque a paz fundamentada na prosperidade comum.
Considerados em conjunto, os acontecimentos político-econômicos pós-Guerra Mundial foram capazes de substituir a guerra pela luta por melhores posições na produção, no comércio e nas finanças mundiais.
Os conflitos refluíram para o âmbito regional e muito frequentemente tiveram, depois do desabamento da União Soviética e dos ideais comunistas, mais fundamentos culturais e religiosos do que propriamente econômicos.
As transformações no sistema produtivo, nos últimos 40 anos, com uma série de avanços tecnológicos, permitiram uma expansão econômica à escala global sem guerras nem anexações territoriais.
A atual globalização difere, portanto, da anterior expansão capitalista, denominada geralmente de imperialismo, que supunha o poder dos Estados, com exércitos, guerras e ocupações coloniais.
Que modificações advirão do quadro de poder que vai se desenhando no mundo, somado à crise financeira iniciada em 2007 e que perdura? Uma coisa parece certa: o predomínio do Ocidente se vê contestado pela emergência de fatores econômicos, demográficos, e mesmo culturais, sinocêntricos, ou, melhor, asiáticocêntricos. Está reaberta a rota para o Extremo Oriente.
Dominique Moïsi, analista francês da cena internacional, vem insistindo na tese, exposta no livro “A geopolítica da emoção”. Em artigo mais recente, mostrou que a América está tentando se adaptar ao que chama de “século da Ásia”, formando uma comunidade econômica com países daquela região.
Alguns países emergentes, como o próprio Brasil, desde a década de 1990, vêm se aproximando da China e da Ásia em geral, sendo que, em nosso caso, as relações com o Japão são mais antigas e já foram mais próximas.
Países africanos, mesmo não sendo “economias emergentes”, do mesmo modo, vinculam-se crescentemente à China como exportadores de matérias-primas, tendência seguida por vários países da América Latina.
Com as consequências econômicas da crise financeira atual, é natural que a tendência de depender da Ásia se reforce. Dela escapa a Europa, embora não tenha sido capaz de tomar decisões que interrompam a débâcle econômico-financeira.
Velhas tensões voltam a incandescer os corações europeus. Berlim quer se manter na ortodoxia financeira, não aceita que o Banco Europeu empreste aos Tesouros nacionais, teme que os eleitores reajam negativamente a ajudar países que, ao ver deles, não souberam ser previdentes. Por isso, se recusa a emitir bônus salvadores em troca de títulos das dívidas dos bancos e países europeus.
É como se, de alguma maneira, voltássemos, figurativamente, à linguagem das guerras.
Em alguns países europeus, se deu a falência da política: enquanto os povos protestam indignados, os “mercados” indicam e conseguem impor primeiros-ministros, tal a desmoralização dos partidos e da classe dirigente.
Nesse panorama, é premente que apareçam lideranças globais do calibre das que conseguiram criar a ONU e suas diferentes organizações, e daquelas que construíram a velha-nova Europa.
Os governos norte-americanos já erraram muito ao não perceber o significado do mundo árabe e islâmico e tentar impor-lhe o seu estilo de democracia, quando eles próprios já se retorciam em dificuldades econômicas e políticas.
O mundo todo paga o preço da expansão do terrorismo e da quase impossibilidade de manter unidas comunidades religiosas, culturais e nacionais diversas sob o domínio de um mesmo Estado.
Caiu o Iraque, mas a paz não veio. O Afeganistão padece entre a corrupção e os senhores da guerra e do ópio. Na Líbia, uma intervenção que tinha propósitos humanitários percorreu o caminho das atrocidades, e por aí vamos, sem mencionar as áreas mais quentes como Palestina/Israel, Irã ou Paquistão.
Com realismo, mas sem perder de vista os ideais universais desenhados em 1948, é urgente que as potências dominantes reconheçam as novas realidades e convidem à mesa os que têm vez e voz no mundo.
Tomara que Dominique Moïsi tenha razão e que a liderança americana esteja mesmo construindo as bases para um relacionamento estável, de paz, prosperidade e respeito aos direitos humanos, com a Ásia, sem ambicionarem difundir sua ideologia política nem, muito menos, aceitar a generalização do modelo chinês.
Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente da República