EM BUSCA DOS PARENTES MORTOS EM PARIS

Por Ribamar Bessa:

Numa ladeira tortuosa da ala sul do Cemitério Père Lachaise, em Paris, estão enterrados muitos “indigentes”. Entre eles, na Quadra 56, três amazonenses, “barões da borracha” falidos, que morreram na capital francesa na maior pindaíba, arruinados com a crise de 1914 depois de gastar a fortuna em orgias dignas da dupla Cabral-Cavendish. Os seus nomes sequer são legíveis e só sabemos que as sepulturas pertencem a herdeiros dos donos de seringais graças às informações da historiadora da Universidade do Pará, Rosa Acevedo, com quem visitei as tumbas no inverno de 1982.
A neve cobria os túmulos de conhecidos representantes das ciências e das artes, de Molière a Edith Piaf, passando por Victor Hugo, Augusto Comte, Chopin, Sarah Bernhardt, Isadora Duncan, Oscar Wilde, Allan Kardec e tantos outros, cujos admiradores periodicamente colocam flores e até pagam a limpeza das sepulturas. A cova dos “barões da borracha”, no verão cobertas de mato, naquele inverno estavam com lama e neve.
Sentiriam frio aqueles ossos que chocalharam um dia pela Av. Eduardo Ribeiro em Manaus e logo depois pelo Boulevard Saint-Michel, esbanjando em curto tempo a fortuna acumulada com a exploração da força de trabalho de nordestinos, cabocos e índios e com negociatas escusas regadas à propinas? Apesar disso, em gesto de desonesta e provinciana comiseração, transferiria eu camélias de um túmulo rico para adornar as sepulturas dos três infelizes, que não têm quem lhes acenda uma vela?
No cemitério
Não. A coroa de flores que eu queria depositar era no jazigo de três outros conterrâneos amazônidas, que morreram em Paris num sábado primaveril, 4 de maio de 1613, após rigoroso inverno, mas não foram sepultados no Père Lachaise. Eles morreram de frio e de solidão no meio de espantosas alucinações e crise de identidade, depois de batizados in extremis com nomes cristãos: Manen, o Anthoine, Patuá, o Jacques e Carypyra, o François. Faziam parte da comitiva de seis índios levados pelos franceses de São Luís do Maranhão a Paris, três dos quais sobreviveram.
O perfil e a biografia de cada um foi desenhado a bico de pena nas crônicas dos capuchinhos Claude D´Abbeville e Yves D´Evreux, que viveram em São Luís. Manen, um deles, nasceu num dia qualquer de 1593, em Renary, aldeia do rio Pará. Nacionalidade: Tupi. Sinais particulares: “cabelos longos e lisos, voz doce e suave, humor fácil, temperamento cordial, afável e brincalhão”. Causa mortis: febre ardente e inexplicável, com paralisia das duas mãos.
Anthoine Manen foi enterrado com o hábito de São Francisco no próprio convento dos Capuchinhos, na Rua Saint-Honoré, em Paris, num solene funeral após intenso sofrimento, como nos conta D´Abbeville. Agora, eu só podia levar-lhe flores se localizasse o tal convento. Propus, então, ao antropólogo Renato Athias, que trabalhou no Rio Negro e fazia seu doutorado na França, um rastreamento da área.
Realizamos juntos peregrinação pela Rua Saint-Honoré e pelo Faubourg do mesmo nome. Percorremos de um extremo ao outro, prédio por prédio. Passamos por butiques de renome, lojas chiques de perfumes e cosméticos, joalherias, galerias de arte, restaurantes, salões de beleza, livrarias e até a igreja de São Roque, mas nenhum sinal do convento capuchinho. Não desistimos. Procuramos a residência da congregação em outro bairro, na Rue Boissonade. Lá, ninguém sabia de nada, mas nos deram o telefone em Marselha do historiador da Congregação.
Nas catacumbas
– Alô. Estou procurando um parente meu enterrado no vosso convento – eu disse ao padre Jean Mauzaize, um velhinho simpático cujo nome de congregação é Raoul de Sceaux, autor de uma história dos frades menores da Província de Paris.
Ele informou o local exato do convento próximo ao ângulo da Rua de Castiglione, mas confirmou sua demolição em 1804. Explicou que até o século XVII, quando não havia cemitérios públicos, cada convento tinha o seu privado, dividido por paróquias. Por medidas sanitárias, a Revolução Francesa acabou com todos eles e transferiu os ossos, incluindo os dos índios, para as Catacumbas de Paris em Denfert Rochereau, que recebe visitas no terceiro sábado de cada mês.
Num sábado, lá vou eu e outra amazonense Marilza de Melo Foucher buscar nossos parentes. Descemos enorme escadaria, caminhamos por um túnel comprido, sombrio e úmido com painéis explicativos, atravessamos uma porta metálica do Ossuário Municipal, passamos por um portal com a inscrição que recomenda o visitante parar porque “É aqui o Império da Morte”. Não paramos. Mais adiante, uma placa genérica informa que ali estão as ossadas do convento dos Capuchinhos transferidas no dia 29 de março de 1804. – Encontramos – eu comemorei.
Não foi possível, porém, comprovar. O painel menciona os restos de Santo Ovídio e de outros mortos ilustres, mas omite qualquer registro de Manen, Patuá e Carypyra que lá estão, como sabemos, cobertos pelo pó, o esquecimento e o silêncio. A expressão “memória subterrânea” desenvolvida por Michael Pollak ganha outra dimensão lá embaixo, nas Catacumbas de Paris, um monumento oficial consagrado à história, um lugar de memória que apagou a lembrança das minorias excluídas e marginalizadas.
Urubu na carniça
O que esses índios foram fazer em Paris? D´Abbeville confesa claramente que o objetivo era consolidar a aliança dos franceses com os Tupinambá do Maranhão, na luta contra os portugueses pela ocupação do território. Por isso, os seis índios foram recebidos em “acolhida triunfal e com salvas de canhão”, num espetáculo publicitário que pretendia recrutar novos colonos e arrancar uma ajuda de 20 mil escudos da rainha Maria de Medicis para as missões.
Os três sobreviventes – Itapucu batizado como Louis Marie, Uaruajó como Louis Henry e Japuaí como Louis de Saint-Jean – no dia da cerimônia de batismo desfilaram pelas ruas de Paris, em grande pompa, ao lado de Maria de Medicis e de Luis XIII, ainda adolescente, seus padrinhos no ritual celebrado pelo próprio arcebispo de Paris. Eles se chamaram todos Luís, como seu padrinho, a fim de “tornar familiar o nome do rei para os índios de sua tribo”. 
A cerimônia começou às 16 horas do dia 24 de junho de 1613 com uma enorme multidão concentrada desde cedo. Centenas de soldados armados foram mobilizados às pressas para guarnecer os portões do convento e impedir que o povo os derrubasse para ver o “espetáculo” caracterizado pelo luxo e a badalação: tapetes de seda ornados de ouro, pia batismal de prata e esmalte dourado, colchas de tafetá e índios com vestidos de seda.
Os outros três índios que morreram, em sua agonia, tiveram alucinações. Um deles, no leito de morte, viu uma enorme quantidade de urubus negros, que bicavam o seu corpo como se fosse carniça podre. O outro, escondido debaixo do lençol, sonhou com índios que o ameaçavam de morte se ele aceitasse o batismo e renegasse sua cultura. Os capuchinhos não entenderam bulhufas. O frei D´Abbeville narra tais visões que interpreta como tentações do capiroto na disputa por aquelas almas. Os frades sapecaram água benta para afastar o Tinhoso. Os índios morreram, mas como cristãos – se vangloria  o padre.
A trajetória dos donos de seringal na França, assim como os índios batizados e mortos são fios soltos que nos levam a refletir sobre a necessidade de reelaborar a História do Brasil ensinada em nossas escolas.