Em debate na tevê Bandeirantes (‘Canal Livre’), o ex-governador do Rio Grande do Sul Antonio Brito, também ex-porta voz de Tancredo Neves (tratava-se de programa em torno dos 30 anos da morte presidente que não tomou posse), surpreendeu seus interlocutores – para os quais tudo está bem porque ‘as instituições estão fortes’, isto é, ‘resistindo a todos os abalos’ –, ao trazer à baila os riscos dessas mesmas instituições em face da crise política.
Ora, sabemos, os que leem a história para colher lições, instituições democráticas perdurantes e falência política são fenômenos incompatíveis entre si. E, nesse ponto, o entrevistado indicou o paradoxo que para ele é essa vitalidade institucional de hoje contrastando com o desencanto dos cidadãos diante da política que ele esperava ver festejada pelos feitos que hoje podemos comemorar.
Para socorrer os que não têm essa memória: a transição da ditadura para a democracia, a consolidação constitucional com a carta democrática de 1988, o processo eleitoral continuado sem ameaças desde 1989 (ultrapassando sem traumas um impeachment) e, não menos importante, quatro eleições presidenciais vencidas por candidatos de centro-esquerda. Há, sim, o que comemorar, bastando lembrar os avanços institucionais e políticos desses nossos 30 anos de estabilidade continuada, contrastando com os 18 anos da república de 1946/64, juncada de golpes-militares, 1954 (deposição e suicídio de Vargas) e 1955 (tentativa de golpe contra a posse de JK e contragolpe de Lott), dois levantes militares (Aragarças e Jacareacanga), uma renúncia e uma tentativa militar de impedir aposse do presidente constitucional, o golpe parlamentar (1961) que impôs o parlamentarismo e, finalmente, a intentona de 1964.
Qual é o indicador da crise de hoje?
O desapreço do povo por essas instituições, manifestado pelo desapreço à política, aos partidos e os políticos. A política não é vista como o instrumento de realização democrática do bem-comum, os partidos são julgados como súcias e os políticos como aproveitadores, desgarrados dos interesses coletivos, motivos tão só na mesquinha luta do poder pelo poder, para nele locupletar-se. Nessa política não haveria mais distância ética entre meios e fins, pois tudo é uma coisa só.
Indicativo desse novo olhar popular das instituições que construiu com tantos sacrifícios seria o deserto de homens e ideias. O homem comum não encontra mais líderes para seguir nem ideias para defender. A política não oferece teses, não estimula o debate e o parlamento é um simulacro do poder popular. Para por de manifesto esse nosso vazio, foi lembrado, naquele debate, o palanque das ‘Diretas Já’ (1984), no qual discursavam, entre outros, Ulisses Guimarães, o ‘senhor diretas’, Luiz Inácio Lula da Silva, os então governadores Tancredo Neves, Franco Montoro e Leonel Brizola, além de Mário Covas e Miguel Arraes, todos verdadeiras legendas nacionais, personalidades já incorporadas como atores da história, e todos condutores de multidões.
Ficou no ar, como uma esfinge, a pergunta que ninguém se dispôs a formular, com medo da resposta: qual seria o palanque de hoje? (Fica o desafio também para o leitor). Certamente, penso eu, um palanque sem cor, sem história atrás de si e sem multidões à sua frente, sem líderes nem liderados, vazio como está o País de quadros populares, de condutores de massas, de políticos que podem caminhar pelas ruas e praças e tomar café na esquina. A pobreza política de hoje expõe nossa tragédia com a clareza do sol de meio-dia: a ausência de biografias, e biografias de estadistas não se fazem da noite para o dia, não se fabricam em série. Elas resultam da lenta acumulação do processo histórico, que mais exclui do que incorpora, num severíssimo processo de seleção.
Mas o problema aflorado pelo debate não se conforma na ausência e pobreza de agentes do processo histórico, posto que contamina as instituições republicanas.
E é disto que se cuida.
Não se trata, pois – e há muito o que lamentar –, da pobreza específica deste ou daquele fazer político, pois a crise de representação se espalha como metástase por todo o corpo social, engolfando a todos na mesma mediocridade que perversamente domina a vida parlamentar, domina a governança, domina governantes e oposicionistas, domina o Judiciário, porque domina a vida pública em geral, nela incluído o ofício jornalístico que, com surpreendente desenvoltura, logo se adaptou à nova ordem da mediocridade, que aprofunda e estimula, porque sua seiva passou a ser a pasmaceira intelectual atrás da qual se esconde.
A crise, porém, pervade todo o tecido social.
Um grande líder nacional, que surgiu na política depois dos anos setenta, comentava comigo, faz dias, ser um homem de muita sorte por haver vivido e feito política num momento riquíssimo da vida nacional. E apontava haver visto as greves do ABC, as campanhas pela Anistia e pelas ‘Diretas Já’, das quais participara, a queda da ditadura e a retomada democrática, da qual fora ator. Havia acompanhado, como todos nós, o surgimento de artistas e compositores como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, havia torcido pelo esfuziante futebol brasileiro, para chorar diante de nossa última participação em Copa do Mundo. Que poderão contar amanhã, para seus filhos, as gerações de hoje? De qual Brasil terão memória?
A política, de há muito, deixou de ser o estuário do civismo (palavra condenada como anacrônica), para transformar-se no espaço das revoluções pessoais. Reduzida ao pragmatismo rasteiro, fez-se mãe e filha da desnaturação do sistema de partidos, no mais das vezes meras corporações de interesses escusos. Partidos sem política, sem programas, sem projeto de sociedade, sem projeto de Brasil e muito menos visão ideológica do mundo. Partidos-negócio, partidos lobbies, donde políticos igualmente descomprometidos com o interesse publico. Para o cidadão, o eleitor, o homem comum, este que realmente faz o país, os partidos são instrumentos sem serventia, cuja função ignora no processo democrático representativo que não entende.
Como falar, portanto, em ‘instituições robustas’ se a democracia representativa carece de partidos e os partidos de lideranças; se o político é malvisto e a política, por consequência, é abjurada, com razão, pelo eleitor que vai às ruas para dizer que não se identifica com o fazer político, que nutre desprezo pelos políticos, e simplesmente ignora os partidos, esse instrumento de mediação insubstituível nas democracias de massas?
O fato objetivo é a crise política (de que, nesse caso, a crise econômica é uma derivação), e nela a crise do segundo mandato da presidente Dilma é um ponto relevante, mas não é o todo. A crise profunda, mãe de todas as demais, é a crise da representação, resumida no fato de o eleitor não se identificar com o mandatário que acaba de eleger. Causa e efeito ao mesmo tempo, cupim que pode correr a instituição democrática, a crise de representação está no centro de tudo. Não se trata de problema jurídico a ser resolvido pela alquimia dos constitucionalistas sempre à mão.
Ingrediente perigoso da crise é a exaustão do presidencialismo tal o praticamos, a degeneração terminal do ‘presidencialismo de coalizão’ apressada por um sistema eleitoral canhestro que favorece a malversação do voto mediante o financiamento empresarial de campanhas, a violência do poder econômico e o abuso do poder econômico. Ingrediente perigoso é a falência do sistema de partidos, exaurido pela ausência de matéria prima. O que não se resolve apenas com mecanismos legislativos.
Sem povo se expressando e sendo ouvido e se identificando com o que fazem e dizem seus representantes, não há possibilidade de instituições acima de qualquer risco.
Leia mais em www.ramaral.org.br