E SE HOUVER GOLPE?

Por Ribamar Bessa:

Há um brasileiro que quer viver

 e começa a viver dividido

 entre um Brasil que morre

 e outro Brasil que esperneia.

 Brasileirinho que vens ao mundo,

Que  Deus te proteja.

Um dos dois Brasís

 há de ferir teu coração.

(Parafraseando Antonio Machado)

Foi no auditório lotado da Universidade Federal Fluminense (UFF), quarta-feira (30) na mesa em que participei. Havíamos acabado de gritar juntos: Não vai ter golpe! – E se houver? – indaguei na minha fala. Para o Brasil mobilizado contra o golpe, a pergunta é impertinente, mas também o é para o outro Brasil que crê tratar-se de um impeachment legal e talvez descubra, tarde demais, que foi mesmo um golpe. Neste caso, por razões diferentes, os dois Brasis foram enganados por aqueles que planejaram e executaram o golpe. Esse filme já passou aqui, em 1964, e na Espanha, em 1936.

Na minha intervenção, lembrei o livro “1964, a Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe” escrito pelo ex-professor da UFF, já falecido, o cientista político uruguaio René Dreifuss, que nos revela os mecanismos do golpe de 1964, ensaiado três anos antes quando Jânio Quadros renunciou. Ele cita o general Golbery que, diante da tentativa abortada em 1961, aprendeu a lição e concluiu que “não basta tanque e canhão para dar um golpe, é preciso o apoio da opinião pública”.

Para conquistar esse apoio, a mídia desencadeou entre 1961 e 1964 uma campanha massiva e ininterrupta de anticomunismo histérico e primário, desinformou, manipulou, confundiu. Dreifuss encontrou na Biblioteca Nacional os arquivos do IPES e do IBAD, instituições que repassavam recursos de empresas multinacionais a jornalistas, políticos, escritores, editoras para que aterrorizassem a população com o fantasma do comunismo. O autor publicou o Caixa 2, com listas nominais e quantias pagas a cada “salvador do Brasil” com espaço na mídia.

As candocas

A mídia matraqueou à exaustão que Jango e os comunistas iam abolir a propriedade privada e tomar o apartamento de quem tinha um e até de quem sonhava em tê-lo. Mais de cem títulos de livros anticomunistas editados em três anos tiveram distribuição gratuita nas bancas de jornais, segundo levantamento de alunos de Biblioteconomia da UNIRIO que seguiram as pistas de Dreifuss. As pessoas, já amedrontadas, foram convocadas para defender a propriedade ameaçada em grandes manifestações contra o comunismo e a corrupção.

A marcha da CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia – mobilizou as candocas criticadas pelo humorista Stanislaw Ponte Preta tão isolado nas páginas dos jornais quanto L.F. Verissimo está hoje. Até Deus teve seu santo nome invocado para apoiar o golpe na Marcha da Família com Deus pela Liberdade que reuniu 800 mil pessoas em São Paulo em 19 de março de 1964.

As ruas certamente se esvaziariam se os manifestantes naquele momento tivessem conhecimento das listas do complexo IPES-IBAD, constatando que tudo aquilo era orquestrado. Mas só depois de Inês morta, com a democracia já sepultada é que muita gente boa descobriu a manipulação e sofreu as consequências: censura, prisões, tortura, exílio. E agora, vai haver golpe? Hoje, já nem precisa de canhão para golpear o país. Basta a aliança da Matraca global com Cunha, Temer, Gilmar Mendes e o pato da FIESP.

– A FIESP montou um Caixa 2 de, por enquanto, R$ 500 milhões para comprar o impeachment de Dilma, dos quais R$ 300 milhões são recursos públicos administrados em nome do Sesi e do Senai, segundo denúncias do economista J. Carlos de Assis, ex-assessor da Confederação Nacional da Indústria. Ele noticiou uma ação popular contra a Fiesp e seu presidente, Paulo Skaf, por desvio de dinheiro público na campanha do golpe.

Ser contra o golpe não é defender Dilma contra quem fizemos campanha, horrorizados com a degradação do debate político promovida pelo marqueteiro João Santana que enxovalhou Marina Silva. Difícil apoiar um governo que tem uma política ecocida e antiindigena, que produz Belo Monte e que tem como ministra Kátia Abreu, a miss motoserra. No entanto, o que está em jogo é a democracia, ameaçada pela quadrilha comandada na Câmara de Deputados por Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe).

No pasarán

Quem é a favor do impeachment deve desconfiar do golpe e de seus companheiros de viagem. É uma inversão de valores. A presidente, cuja honestidade pessoal não é contestada nem por seu mais ferrenho inimigo, vai ser julgada por dezenas de indiciados na Lava-Jato – uma operação aplaudida até ficar enfraquecida pelos vazamentos do juiz Sérgio Moro, que já pediu desculpas públicas pelo erro, mas acabou instrumentalizando os golpistas, turbinando as manifestações de rua e acirrando o ódio e a intolerância entre os dois brasis como ocorreu na Espanha, cuja história recente nos traz ensinamentos.

Em tempos bicudos, é bom se amparar na poesia, na beleza e na reflexão que ela proporciona. O poeta Antonio Machado anunciou, em 1909, a tragédia de uma Espanha bipolar. Nos “Provérbios y Cantares” – composições poéticas de caráter popular que recolhem a tradição oral e a sabedoria coletiva – usa a força da imagem do recém nascido, cujo destino está ameaçado pelo país estilhaçado.

Hay un español que quiere vivir

y a vivir empieza,

entre una España que muere

y otra España que bosteza.

Españolito que vienes  al mundo

te guarde Dios.

Una de las dos Españas

ha de helarte el corazón.

Menos de trinta anos depois, em 1936, já na Espanha Republicana, a esquerda ganhou as eleições com 47.1% dos votos contra 45.6% da direita que, inconformada, optou pelo golpe. “No pasarán”, o grito de Dolores Ibarruri, La Pasionária, que ecoou em defesa da democracia, soava como o nosso “não vai haver golpe”. Houve. No dia 18 de julho de 1936, o general Franco usou as armas para tomar o poder com ajuda da Alemanha nazista e da Itália fascista, mas a outra Espanha resistiu durante mais de três anos.

Começou a Guerra Civil, que fraturou o país, dividiu famílias e comunidades, enterrou amizades e revelou a fera dentro de cada um. O filme “Viva La Muerte” de Arrabal ilustra essa desagregação através do personagem Fando, um menino que assiste a prisão do pai, militante da Frente Popular, denunciado por sua própria mulher, mãe de Fando, que era fascista.

Aqui, os brasileirinhos já começam a ser feridos no coração por um dos brasis. A pediatra Maria Dolores Bressan negou atendimento a um bebê de um ano em Porto Alegre (RS) alegando que a mãe dele era petista. Recebeu apoio do presidente da Unimed em Bauru (SP), Roberson Moron: “A única obrigação ética é atender emergência. Se não é emergência, que procure outro médico que aceite atender canalhas”. Esse clima demencial é que levou à morte a mais de 400 mil espanhóis, entre eles o poeta Garcia Lorca.

As tropas franquistas venceram no dia – olhem só a data – 1º de abril de 1939, e a Espanha exaurida mergulhou na noite de uma ditadura que durou quase quatro décadas. Dois anos antes, em 1937, outro poeta – o peruano Cesar Vallejo que lutou na Guerra Civil Espanhola – evoca a dor em “España, aparta de mi ese cáliz“. Diante da palavra de ordem “no pasarán”, ele se perguntou, temeroso: “E se passarem?”. Convoca, então, desta vez as crianças do mundo inteiro:

Niños del mundo,

si cae España

digo, es un decir,

si la madre España cae,

digo, es un decir,

salid, niños del mundo,

id a buscarla!

Se houver golpe – digo, assim por dizer – se vencer o Brasil da pediatra gaúcha, quem irá tirá-lo do fosso? Quem pagará essa dívida histórica com nossos filhos e netos?

P.S.1 Para Maria, Flavinha e todas aquelas que trazem no ventre crianças brasileirinhas.

P.S.2 – Pensava em comentar aqui uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado, que bem mereciam uma resenha. A conjuntura não deixou. Fica aqui o registro:

a) Ticiana de Oliveira Antunes. Indios arengueiros: senhores da Igreja? Religião e Cultura Política dos indios no Ceará do Oitocentos. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. UFF. Banca: Regina Celestino (orientadora), Isabelle da Silva (UFC), Larissa Viana (UFF), José R. Bessa Freire (UNIRIO/UERJ), Verônica Secreto Ferreras (UFF). Defesa: 29 de março de 2016.

b) Aline da Silva Franca. Do cocar ao catálogo: a representação bibliográfica de da autoria indígena no Brasil. Mestrado Profissional em Biblioteconomia. UNIRIO. Banca: Naira Christofoletti Silveira (orientadora), Elisa Campos Machado (UNIRIO), José R. Bessa Freire (UNIRIO/UERJ). Defesa: 30 de março de 2016.