Por Everardo Maciel:
O federalismo fiscal brasileiro na reforma tributária dos anos 1960 guardava certo grau de consistência, ao menos no tocante à titularidade dos tributos e ao regime de transferências intergovernamentais, ainda que fosse claudicante na repartição dos encargos públicos.
Desde então, o federalismo fiscal vem sofrendo uma persistente degradação, ressalvadas episódicas iniciativas, como a reestruturação da dívida pública dos Estados e Municípios e a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Sempre que há uma crise financeira nas entidades subnacionais, notadamente nos Municípios, gera-se uma enorme pressão para ampliar os repasses federais, em nome de uma mítica descentralização fiscal.
Assim, por exemplo, os percentuais do imposto de renda e do IPI destinados à formação do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) foram crescendo continuamente, desde os 10% originais até quase a metade da arrecadação daqueles impostos.
Em consequência, as receitas de contribuições sociais, não partilhadas com Estados e Municípios, cresceram espetacularmente, porque ao aumento dos Fundos não correspondeu uma transferência efetiva de encargos, por isso mesmo as finanças daqueles entes ficaram extremamente vulneráveis às quedas de arrecadação do imposto de renda e do IPI, inclusive quando decorrentes de desonerações tributárias.
A Constituição de 1988 ofereceu uma generosa colaboração para tornar ainda mais inconsistente o federalismo fiscal:
* elevou as transferências à conta do FPE e do FPM;
* incorporou ao ICMS os impostos únicos federais sobre combustíveis e lubrificantes, energia elétrica, minerais, transportes e telecomunicações, o que posteriormente serviu de pretexto para o abandono das demais bases imponíveis (hoje, aquelas bases representam mais de 40% da arrecadação daquele imposto, a despeito de o ICMS manter-se praticamente constante como proporção do PIB);
* tornou ambíguo o conceito de transferências intergovernamentais;
* pretendeu, sem sucesso, instituir a cooperação intergovernamental na execução das políticas de competência comum e, simultaneamente, admitiu a possibilidade de, por lei complementar, autorizar os Estados a legislar sobre matéria de competência privativa (sic) da União;
* acolheu a participação dos Estados e Municípios “produtores” nas receitas provenientes da exploração de petróleo e gás;
* partilhou com os Estados e Municípios a arrecadação da CIDE-Combustíveis, malgrado tratar-se de receita francamente extrafiscal, etc.
Essa atabalhoada construção produziu uma estrutura de federalismo fiscal difusa e desarticulada, que estimula falsos dogmatismos, competições predatórias e manipulação política.
Nesse território, floresceram arbitrários critérios de transferências, com especial destaque para o FPE e para os royalties do petróleo, e a guerra fiscal do ICMS, do ISS e, por incrível que pareça, do IPVA.
O STF considerou, em fevereiro de 2010, inconstitucionais os critérios de partilha do FPE, modulando os efeitos da decisão até 31 de dezembro de 2012. A União deu a entender que não se envolveria nessa matéria, como se os Estados fossem entidades extragalácticas. Os congressistas, demasiado ocupados com a indicação de prepostos para cargos públicos e a liberação de emendas parlamentares, abdicaram da responsabilidade de legislar.
Hoje, essas transferências – vitais às finanças da grande maioria dos Estados – são efetivadas com base em uma esdrúxula interpretação do Tribunal de Contas da União, posteriormente amparada por liminar concedida pelo STF, em ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Os royalties do petróleo constituem uma batalha que está longe de terminar. Os Estados “produtores” alegam, em seu favor, uma patética tese de ofensa a contratos celebrados, sem que jamais neles tenham sido parte, e a um curioso direito adquirido (direito de quem?); os não produtores, por sua vez, assanhados pelo eldorado do pré-sal, não se sensibilizam com o desastre que decorreria da abrupta descontinuidade naquelas transferências.
A guerra fiscal do ICMS está sendo enfrentada de maneira especialmente incompetente. A Resolução nº 13 do Senado, não bastasse ser inconstitucional, está gerando burocracia, acúmulo de créditos e violação de segredos comerciais das empresas.
O projeto de Resolução que pretende uniformizar as alíquotas do ICMS, com o objetivo de eliminar a guerra fiscal, é uma pérola de ingenuidade. Guerra fiscal existe porque não se admite a competição fiscal lícita e porque não existem sanções para sua prática. Vincular o seu enfrentamento à uniformização das alíquotas do ICMS tem custo fiscal elevado, forte resistência dos Estados mais pobres e eficácia duvidosa.
Há, portanto, uma curiosa alternância entre a omissão desidiosa e a intervenção negligente. Ainda assim, como no filme de Federico Fellini, “E la nave va”, seguimos sem rota e sem futuro, travando batalhas surrealistas e nos refestelando como comensais privilegiados de macunaímicos festins.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal.