– Entendes, Fábio, o que estou dizendo?
– É claro que entendo!
– Mentes, Fábio, que sou eu que falo
E nem eu me entendo!
Lope de Vega (Soneto “Mientes Fabio”)
O nome do bloco é “Mater mea ego volo lactere”. Seus integrantes fantasiados de toga e beca, todos da magistratura, vivem arrotando um latinorum em suas sentenças, que é mesmo pra ninguém entender. Por isso, neste carnaval, vão desfilar cantando marchinhas em latim, com – digamos assim – “argumentos” em causa própria. Graças ao latim de missa aprendido no seminário, o Taquiprati (Ecce tibi) traduzirá aqui as letras cantadas pelos foliões togados, num serviço exclusivo a seus raros leitores, começando pelo nome do bloco: “Mamãe eu quero mamar”.
Cabe o Brasil inteirinho dentro das marchinhas de carnaval. Elas dramatizam as relações sociais, o amor, o ciúme, o puxa-saquismo, a vingança, a corrupção, a inveja, a vida política, o poder, incluindo o Judiciário com seu auxílio-moradia. Para o antropólogo Roberto DaMatta, autor de “Carnaval, malandros e heróis”, podemos “ler” criticamente o Brasil através da sua literatura oral presente na música de carnaval, cujas letras, num país com taxa alta de analfabetismo, funcionam como a literatura erudita escrita na Europa. Ambas permitem, por caminhos diferentes, que cada sociedade mostre sua cara, seus medos, desejos, privilégios, preconceitos, valores.
Malandros e heróis
O desfile vai ser aberto com o hino oficial que dá nome ao bloco. Essa marchinha canalha, maliciosa, carnavalesca, desperta associações entre mamãe, mamar e mamata, o que sugere negociata, negócio escuso acobertado pela própria lei, como revela DaMatta em “O poder mágico da música de carnaval – Decifrando Mamãe eu quero”. Os foliões togados confirmam isso cantando em latim para evitar que o populacho entenda:
“Mater mea ego volo lactere” (três vezes)
Auxilium residentia ducite (três vezes)
Ut puer judicis non lacrimare.
O bebé, o puer judicis, quer mamar para não chorar e sua chupeta é o auxilium residentia. O desfile prossegue com a conhecida marchinha “Me dá um dinheiro aí”, sucesso em todos os carnavais desde 1959, quando foi lançada, e que aqui reivindica despudoradamente o auxílio pecuniário aos juízes:
Ehem! Ubi estis!
Pecuniam date me! Pecuniam date me!
Ne ibitis dare. Ne ibitis dare nullus.
Ego dabo tibi magnam turbationem…
Se a pecúnia não for liberada, os foliões togados ameaçam fazer uma magnam turbationem, uma grande confusão. O povo está furunfado, mas eles não estão nem aí. Parece que vivem em outro país. É como se não tivessem nada que ver com a desgraça alheia. Ora, quem mama, no caso, tira o leite da boca das crianças necessitadas e se torna corresponsável pela miséria, sacramentando a distribuição injusta de riqueza. Existe, portanto, uma relação de causa e efeito entre as mordomias de uns e a indigência de outros.
Quem sabe disso são os camponeses andinos que elaboraram a “teoria do bem limitado”, como me revelou uma antropóloga que fez sua pesquisa no Vale do Colca, Peru. Resumindo de forma simplista: se uma comunidade de cem pessoas produz cem espigas de milho para ser distribuído igualitariamente e alguém se apropria de dez espigas, várias pessoas ficarão chupando o dedo.
Portanto, se povo está furunfado, isso não é obra do acaso. É porque existe um furunfador. Quem? Quem? Quem?
Puto putare
Cícero percebeu isso e criou jurisprudência na célebre polêmica com Catilina no Senado de Roma:
– Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra? Nulla actio furunfactorum sine homo furunfactor et sine homo furunferractus.
A frase do tribuno romano foi traduzida livremente, mas com precisão cirúrgica pelo eminente jurista mineiro Orozimbo Nonato:
– Não enche o saco, Catilina. Se não existisse furunfador, não haveria furunfado. Elimina o furunfador e o furunfado desaparece.
O povo está muito puto que, em latim, é a primeira pessoa do indicativo do verbo putare (pensar). Os juízes que recebem auxílio moradia de forma imoral querem manter seus privilégios à custa da desigualdade. Por isso cantam marchinha gravada em 1949, cujo primeiro verso pode ser traduzido como “daqui não saio, daqui ninguém me tira” e ainda se perguntam ironicamente: “Onde é que eu vou morar?”
Sedet aeternumque sedebit
Ubi est habitabo ego?
Quem não pertence à magistratura está pensando: “Ego puto fioforum plus infra est”, como queria Tito Lívio, ou seja, “penso que o buraco é mais embaixo”. Nesse caso do auxílio-moradia, muitos brasileiros pensam que os juízes se igualam às pessoas que condenam, e que são todos, nas palavras de Virgílio, “ejusdem farinae mandiocae paneirorum” – tudo “farinha do mesmo paneiro”.
Pior ainda do que o assalto aos cofres públicos com o auxílio-moradia pago para quem tem até 60 imóveis na mesma cidade, são as justificativas xexelentas apresentadas que nos fazem pensar, data vênia, em indigência já não só moral, mas mental. Podem ser ricos de dinheiro, mas são pobres de argumento. Um diz que ele e a mulher recebem porque é legal, sem discutir quem fez a lei. Outro dono de muitos imóveis, diz que embolsa o penduricalho mensal de quase cinco mil paus e ainda debocha com escárnio:
– É pouco.
Um terceiro jura que se trata de uma compensação salarial, o que significa então que somado ao salário de quase R$ 30 mil, ultrapassa o teto legal, admitindo, portanto, que dá um jeitinho para contornar a lei. Esse não seguiu o sábio conselho de D. Quixote a Sancho Pança no dia em que ele assume o poder na Insula:
– Se por acaso descumprires a lei, que não seja motivado pelo dinheiro, mas pela misericórdia. (Cap. XLII)
Cotocorum dabo tibi
Pura malandragem. Se eles raciocinam assim em suas sentenças, então estamos fritos. “Hic culum cotiae sibilare”, como diria um dos reis vândalos, não sei se Hilderico ou Gunderico, Mas com certeza é aqui que o fiofó da cotia assovia. Os magistrados, ávidos em acumular bens, defendem o princípio da “farina parca caldus piscis meus primundum” (farinha pouca, meu pirão primeiro) Estranha forma de administrar justiça: onde não existe justiça, não pode haver direito (Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus).
O Judiciário merece respeito porque é garantia da sociedade democrática. Numa sociedade com desigualdades gritantes como a nossa, a Justiça deve buscar formas de diminuir essas injustiças e não de aprofundá-las.
Quando a magistratura escorrega na maionese (in maionesis resvalare), só nos resta assumir as palavras do advogado de defesa de Sacco e Vanzetti – os dois trabalhadores migrantes italianos condenados à cadeira elétrica, nos Estados Unidos, em 1927, por um crime que não cometeram. Olhando nos olhos do juiz Thayer que deu a sentença de morte, o advogado disse:
– “Perdi as últimas ilusões que ainda tinha na Justiça e na Magistratura dos Estados Unidos. Nunca mais colocarei meus pés num tribunal. Nunca mais exercerei uma profissão que me obriga a ter contatos com pessoas como o senhor, pelas quais tenho o mais profundo desprezo”.
O contraste escandaloso entre o povo e a magistratura, que perdeu o senso da equidade, exige uma reforma do judiciário, porque não é possível que muitos cuspam sangue para que poucos vivam melhor, como na canção de Atahualpa Yupanqui “Preguntitas sobre Dios”.
Para quem defende penduricalhos, cotocorum dabo tibi. Ecce tibi. Não é o caso de vários juízes, entre os quais Carlos Roberto Gomes do Tribunal de Justiça do Maranhão que abriu mão dos auxílios de moradia, saúde, alimentação, livros e outros “para ficar em paz com minha consciência”.
P.S. Aviso aos especialistas em latim, que me pauto pelo latim vulgar, como era de se esperar. Quanto ao latinorum dos juízes, eles acham que confere respeitabilidade como o paletó e a gravata. Fazem pose de sábios, mas como nos versos de Lope de Vega, nem eles entendem o que falam. Tudo enrolação, como sinalizou a juíza peruana Roxana Jimenez Vargas que decidiu abolir o formato tradicional das sentenças e o latinorum: “Uma redação obscura muitas vezes oculta o desconhecimento do caso ou a intenção do juiz de favorecer injustamente a alguém” – ela disse.
Obs. – Ilustração pirateada de Angeli e de outras fontes.