Por Ingrid Fagundez, da BBC Brasil, em São Paulo:
A fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula do câncer”, está gerando um debate no pais.
Promessa de vida mais longa ou irresponsabilidade médica? A fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula do câncer”, está no meio de um debate que ganha mais um capítulo hoje.
Nesta quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal julga uma ação da Associação Médica Brasileira (AMB) que questiona a lei que libera o porte, o uso, a distribuição e a fabricação da substância, supostamente eficaz no combate contra tumores.
Sancionada pela presidente afastada Dilma Rousseff a poucos dias da votação do impeachment no Senado, o texto permite que pacientes diagnosticados com a doença usem a fosfoetanolamina por livre escolha.
A sanção foi criticada pela comunidade científica por liberar um composto que não tem registro na Anvisa nem eficácia comprovada.
‘Para minha mãezinha’: como a lei da ‘pílula do câncer’ uniu Congresso dividido e foi aprovada em tempo recorde
Produzida há mais de 20 anos, a fosfoetanolamina sintética foi estudada pelo professor aposentado Gilberto Orivaldo Chierice, no Instituto de Química da USP em São Carlos, e distribuída gratuitamente durante décadas para pacientes.
Em abril, o presidente do STF , Ricardo Lewandowski, autorizou a USP a interromper o fornecimento das pílulas, o que levou a uma enxurrada de ação judiciais e pôs a “fosfo” nos holofotes.
Para entender os argumentos contrários e favoráveis à liberação da pílula, a BBC Brasil conversou com dois dos nomes mais importantes nesta disputa: o presidente da AMB, Florentino Cardoso, e um dos principais pesquisadores da área, o imunologista Durvanei Augusto Maria.
Eficácia e efeitos colaterais
Entre as razões para barrar o acesso, Cardoso cita o desconhecimento sobre a ação e os efeitos colaterais da fosfoetanolamina em seres humanos. Na ação proposta ao STF, a AMB diz que essas incertezas seriam incompatíveis com direitos constitucionais fundamentais, como o direito à saúde, à segurança e à vida.
“Está sendo autorizado o uso de uma substância que as comunidades brasileira e internacional não conhecem em relação ao câncer. O medicamento serve para quê? Em que dose? Deve ser usado como? Qual doente pode usar? Não temos absolutamente nada disso.”
Para Cardoso, os estudos feitos até agora sobre a ação da substância em tumores não comprovam sua eficácia e nem expoõem seus riscos.
No país, não são muitos os trabalhos publicados sobre o assunto. O “pai” da pílula do câncer, Gilberto Chierice, tem em seu currículo só seis pesquisas publicadas sobre a molécula em revistas internacionais. Elas saíram entre 2011 e 2013 e falam da ação da substância em células em laboratório e animais. Nenhuma envolvendo pacientes humanos foi publicada ainda.
O imunologista Durvanei Augusto Maria, que analisa no Instituto Butantan a ação da “fosfo” em células cancerígenas, tem doze trabalhos publicados sobre o tema. Para ele, que foi apresentado à substância por um aluno de Chierice, a literatura existente indica a eficácia da molécula.
Segundo Maria, desde 2000 ele observa que a substância impede o crescimento de tumores e evita a formação de metástases, ao induzir a liberação de enzimas que matariam a célula doente. Além disso, teria um “afinidade química” para penetrar nas células tumorais, poupando as saudáveis.
“A fosfo tem um mecanismo de ação distinto dos quimioterápicos. Estes não conseguem distinguir a célula normal da tumoral.”
Maria também cita estudos de universidades alemãs, financiados por indústrias farmacêuticas, que estariam avançados na fase de testes com humanos.
“Já está sendo feita a avaliação de risco. É expressivo o aumento da sobrevida, o controle do crescimento e da invasão.”
Cardoso diz desconhecer esses estudos e afirma que, dentro do Brasil, há muitas lacunas nas informações.
“Câncer não é uma doença só, são várias. Uma droga serve para uma e para outra não. Quando testam em camundongos, não mostram que vai ser efetivo (em pessoas).”
Após aprovação por Câmara e Senado (acima) e sanção de lei por Dilma Rousseff, Supremo Tribunal Federal julga uma ação da Associação Médica Brasileira (AMB) que questiona a lei que libera o porte, o uso, a distribuição e a fabricação da substância
Estudos do Ministério da Ciência
O presidente da Associação Médica Brasileira menciona também os resultados dos primeiros testes feitos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia neste ano. Relatórios divulgados em março falavam que a “pílula do câncer” produzida na USP de São Carlos não era tóxica, mas também não combatia os tumores. Novas análises já estão programadas.
Logo depois da divulgação, o professor Gilberto Chierice questionou, em um ofício da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro, os resultados obtidos pelo ministério. Durvanei também participou da elaboração do documento. Segundo ele, um dos problemas das análises foi a ordem de grandeza testada, menor que aquela já usada em outros testes.
Apesar de rebater as críticas sobre o que já foi estudado até então, Duvarnei Maria afirma que mais análises são necessárias. Só que é preciso agilizar o caminho até o registro da Anvisa.
“Sou favorável que todos os testes sejam executados. Mas pretendo que não haja tanta morosidade, porque existem estudos há mais de 25 anos, quando o composto começou a ser estudado. Se for cumprir todas as etapas isso não sai por menos de 15 anos. E estou sendo muito otimista.”
Cardoso admite que existem burocracias no processo, mas enfatiza a importância de cumprir todo o rito, para evitar complicações no futuro.
“Todo país sério, quando se descobre determinada substância e se testa, tem um rito a seguir. (É preciso) fazer a pesquisa clínica para chegar às conclusões, ver como funciona in vitro, em animais e depois em um grupo controlado de pessoas.”
Ele culpa os pesquisadores por não terem aproveitado as décadas de distribuição gratuita das pílulas para fazerem análises mais profundas.
“Quando uma pessoa está utilizando uma substância há 20 anos e não fez nenhuma estudo sério… o problema é que ainda impacta muito na vida das pessoas e das famílias. E elas se apegam a qualquer coisa.”
Pressão popular
Para Cardoso, foi essa pressão popular que levou a lei a ser aprovada em tempo recorde no Senado, dando aos parlamentares poderes que eles não têm: por em risco a saúde da população. Além de abrir precedentes para a liberação de outras substâncias não testadas.
“A Anvisa é que tem que regular, não é um deputado, um senador. Estamos sendo motivo de chacota no mundo inteiro.”
A mesma aprovação é vista como uma conquista popular pelo imunologista Durvanei Augusto Maria. Para ele, é como se os direitos dos doentes fossem finalmente reconhecidos.
“Como cidadão, acho que é o primeiro momento que a população portadora de uma doença grave se mobilizou para ter um acesso a um composto que pode propiciar uma maior condição de vida, sem sequelas. É um marco importante.”
Sobre o julgamento desta quinta-feira, no STF, os dois também têm opiniões bem diferentes Para Cardoso, a revogação da lei sancionada por Dilma seria uma prova de “seriedade” do país. Para Maria, um “retrocesso”.