Alguns professores são que nem sumo de caju: deixam marcas indeléveis. Maria Yedda Linhares entrou em nossa sala do Curso de Jornalismo, na FNFi, em 1967, como um relâmpago. Deu duas ou três aulas, fulminantes e arrasadoras, que iluminaram nossas mentes, plantando nelas dúvidas – muitas, e certezas – algumas, o suficiente para se fazer amada per omnia saecula saeculorum. Ela tinha outras obrigações naquele semestre e nos deixou em excelente companhia com duas ex-alunas suas, que assumiram as aulas: Berenice Cavalcante e Valentina Rocha Lima. Voltou no final do ano para o ritual da prova oral.
Foram duas ou três aulas de história contemporânea, mas ficou na lembrança a imagem da cangaceira cearense, amorosa e destemida, que nos abriu os olhos com seu verbo inflamado, seu saber comprometido, sua militância engajada. Ela ensinava história dentro e fora da sala de aula. Vivia e respirava história. Participou ativamente da luta contra a ditadura militar e pagou caro por isso. Num depoimento publicado em 1985, no livro “A Deformação da História”, organizado por J.L. Werneck da Silva, dona Yedda lembra os anos de chumbo na Faculdade Nacional de Filosofia, a FNFi velha de guerra,esquartejada no governo militar:
– Seus professores e alunos foram perseguidos, alvo de inquéritos sucessivos. Muitos alunos foram expulsos. Eu mesma passei por seis inquéritos policiais-militares (IPMs), entre 1964 e 1966, sem indiciação, sem acusações formais, acusada apenas, por convicção, de desejar um Brasil melhor, uma melhor universidade.
Na luta por um Brasil melhor, dona Yedda não se intimidou e, mesmo perseguida, continuou resistindo em várias trincheiras. No final de 1968, o Ato Institucional n° 5 – o famigerado AI-5 – acabou com o que restava de liberdade democrática: “A partir daí, outras atribulações: fui presa três vezes e, finalmente, a punição decisiva, jamais explicada, que me privou da cátedra, da liberdade de trabalhar no meu próprio país e de nele circular como cidadã. Ainda na prisão, fui convidada por iniciativa de Fernand Braudel e Jacques Godechot para lecionar na França”.
Teve até carta de Jean Paul Sartre, dirigida ao ditador de turno, exigindo sua libertação. Ela saiu da cana no Brasil para ser recebida com todas as honrarias na França, aonde chegou – aux armes, citoyens! – no dia 14 de julho de 1969. Durante cinco anos, dona Yedda atuou como professora de história moderna e do Brasil, primeiro na Universidade de Paris-Vincennes e, depois, na Universidade Toulouse – Le Mirail. Foi homenageada com um abaixo-assinado, no qual centenas de alunos solicitavam sua permanência.
Mas dona Yedda aproveitou a primeira abertura no Governo Geisel para regressar ao Brasil, em julho de 1974, quando foi trabalhar no Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Lá, criou o Programa de História da Agricultura Brasileira e promoveu pesquisas inovadoras no âmbito da história agrária. Entre 1977 e 1980, comandou uma equipe de mais de 100 jovens pesquisadores em dez Estados da Federação. Tive o privilégio de ser um deles.
Dona Yedda me buscou na Universidade Federal do Amazonas, onde era professor, para que eu coordenasse uma equipe local do Programa de Levantamento de Fontes para a História da Agricultura do Norte-Nordeste. Foi uma convivência frutífera. Com ela, continuamos aprendendo o valor do documento, a importância do arquivo e o papel da teoria na construção do conhecimento histórico. Numa das reuniões de equipe, em Fortaleza, ela ouviu atentamente minha comunicação sobre os livros de registro de terra, encontrados no Arquivo Público, e me deu um chega-pra-lá carinhoso, mas firme:
– Não generalize, Bessa! Não seja precipitado! Os dados que você apresenta são ainda insuficientes para qualquer teorização. É preciso prudência e rigor. Quem corre o risco de levantar vôo nessas condições é um aventureiro, o que não é o seu caso.
Era o meu caso. Foi gentileza dela. Quando o coordenador do Pará, Geraldo Mártires Coelho, professor da UFPA, apresentou em seguida os resultados do seu trabalho, baseado em uma documentação muito rica, ela recomendou:
– Generalize, Geraldo! A teoria nos liberta. Excesso de prudência prejudica o historiador. Aliás – completou com humor – já que vocês dois são da Amazônia, por que não se juntam e se complementam?
Era assim dona Yedda. Recomendava prudência ao aventureiro, audácia ao prudente, duas qualidades que soube cultivar nela e em seus alunos. Um de seus discípulos diletos, Francisco Carlos Teixeira da Silva, em recente artigo, a definiu com muita precisão: “Rebelde, teimosa, voluntariosa, humana e generosa. (…) Não era mulher de esperar. Agia. Muitas vezes na direção certa, guiada por seu instinto contrário a toda injustiça. Outras vezes era precipitada, nunca, contudo, injusta. No mais das vezes prejudicava a si mesma”.
Um dia, vários professores de História da UFAM, ex-alunos meus, vieram de Manaus para um evento acadêmico no Rio. Manifestaram desejo de conhecer dona Yedda. Telefonei. Sempre disponível, ela marcou um encontro na praça da alimentação num shopping de Niterói, após suas aulas na UFF. Enquanto a esperávamos, discutíamos um livro sobre a ação dos jesuítas no Brasil. Ela chegou no meio da conversa, mas já veio atirando: – “Esse livro é uma porcaria” – disse, contundente, com aquele seu jeito desabusado. Fez-se um profundo silêncio e todo mundo me olhou. É que eu havia acabado de elogiar o livro, minutos antes de sua chegada.
Senti-me, então, na obrigação de defender meu ponto de vista. Destaquei a contribuição do autor para identificar as estratégias de conversão usadas pelos soldados de Cristo e perguntei dela quais as críticas que fazia e o que lhe havia desagradado no livro.
– Não sei. Não li – respondeu.
Parecia aquela boutade de Oscar Wilde, que disse: “Jamais leio os livros que resenho para não me deixar influenciar pelo autor”. Acontece que ela conhecia muito bem o autor da obra em questão: – “Comigo não tem essa coisa de dizer ‘o cara é um crápula, mas escreve bem, é um bom pesquisador’. Não leio obra de dedo-duro, de mau caráter. A vida é curta e tem muito texto interessante para ler. Não li, mas aposto que o índio, no livro dele, aparece como objeto e jamais como sujeito da história”.
Bingo! Sem haver lido, acertou. Para ela, o caráter era tudo. “A história conta hoje com um número maior de especialistas, mas caiu o nível dos cursos de graduação, a responsabilidade social não é mais a tônica no código de ética da profissão” – escreveu. Ela era aquele tipo de historiadora, apaixonada e apaixonante, cujo perfil foi traçado por Drummond num poema, um dos raros textos onde o adjetivo ‘rancoroso’ tem uma conotação positiva: “Veio para ressuscitar o tempo / e escalpelar os mortos / Veio para contar / o que não faz jus a ser glorificado / e se deposita, grânulo / no poço vazio da memória / É importuno / Sabe-se importuno e insiste / rancoroso, fiel”.
Na minha defesa de tese sobre a história das línguas na Amazônia, logo no início fui interrompido pelo presidente da banca, Ivo Barbieri, que fez questão de registrar a chegada da dona Yedda, acompanhada de sua irmã Yonne Leite, as duas haviam chegado naquele momento, sem que eu tivesse percebido. Foi uma bela surpresa. Ela se sentou na primeira fila para ouvir a ovelha desgarrada e perdida, perambulando na fronteira da história, do jornalismo, da literatura, da sociolingüística, do indigenismo e de não-sei-lá-mais-o-quê. De repente, a simples presença dela ali me deixou seguro, protegido, talvez até prudente. Saber que ela estava lá, me tranquilizava.
Dona Yedda (1921-2011) nos deixou nessa terça-feira, 29 de novembro, enrolada com a bandeira do Botafogo – time pelo qual torcia – conforme me informou uma de suas ex-alunas, Lia Faria, que prepara um documentário sobre ela. Defensora da educação para todos, pública, laica e de qualidade, dona Yedda implementou algumas de suas idéias quando foi secretária municipal e duas vezes secretária estadual de educação no governo Brizola.
Procurei no dia 30 de novembro e nos dias 1º e 2 de dezembro a notícia de sua morte nos jornais. Nada. Apesar de ser uma figura pública, nem O Globo nem a Folha de São Paulo registraram sequer uma linha. Muitos de seus alunos, admiradores e professores da rede pública de ensino não sabem de seu falecimento. Para o jornalão da família Marinho, dona Yedda não morreu. Essa foi uma das raras vezes em que, por vias tortuosas, coincidimos com a linha editorial das Organizações Globo.