Por Ribamar Bessa:
Em português, casa é casa e ponto final, cada um que se vire para colocar dentro dela o que bem entender. Na lingua Yaathé, ela já vem “mobiliada”: casa é cetutxiá, que significa lugar de sorrir, lugar de paz, de harmonia. Foi numa cetutxiá, no município de Águas Belas, em Pernambuco,onde viveu 82 anos e onde criou seus treze filhos, que dona Taci, uma pajé Fulni-ô, adormeceu sábado passado, sorrindo. Não despertou mais. Deixou uma coleção de histórias deliciosas que seu filho me contou, algumas das quais compartilho, agora, depois de apresentar Thini-á ao distinto público.
Filho caçula de dona Taci, Thini-á Pereira da Cunha, 42 anos, é um velho amigo que há alguns anos saiu de sua aldeia, entre a Serra Comunaty e a Serra Preta, estudou cinema na USP e depois veio morar num sítio em Muriqui (RJ). Aqui de vez em quando nos encontramos, no projeto ‘Vivências Indígenas’, que ele criou e que lhe permite percorrer escolas e centros culturais, onde narra histórias, discorre sobre filosofia indígena, fala da resistência Fulni-ô e do ritual do ouricuri, dança, canta, mostra o artesanato, além de ensinar algumas noções básicas da língua Yaathé.
Mistura de ator, animador cultural e agitador, ele circula nos meios artísticos, mas nunca deixou de visitar sua aldeia em Pernambuco. Lá, conversava com a mãe e se reabastecia com novas histórias e novos saberes transmitidos em Yaathé, a única língua indígena no Nordeste que se mantém viva e funcional, estudada pela linguista Januacele da Costa, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), coordenadora de um projeto do qual fazem parte pesquisadores e doutorandos, entre os quais Fábia Pereira, que é Fulni-ô.
– Os Fulni-ô são bilingues, pelo menos 90% deles falam fluentemente as duas línguas – Português e Yaathé – ambas usadas na escola da aldeia. O ensino de Yaathé não se limita a palavras soltas; aqui a língua materna tem o mesmo status do português – esclarece Januacele.
Segundo os registros da Funasa divulgados pelo Instituto Sociambiental (ISA), a população Fulni-ô, em 2010, era de 4.336 pessoas, mas se calcula que hoje já ultrapassa seis mil. Uma delas era dona Itaci, mais conhecida por Taci, que aprendeu a ler na época do MOBRAL, porém jamais falava português dentro de casa. Justificava:
– A língua é sagrada, como o ouricuri, porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falar em português, por exemplo, a palavra casa, você só vai lembrar do prédio, das paredes, mas se eu falo cetutxiá, aí você sabe que é, sobretudo, um lugar onde a gente encontra alegria e serenidade.
De onde vim
Foi nesse lugar de paz que se deu a educação de Thini-á. Aos nove anos, perguntou à mãe:
– Como é que eu fui feito?
Taci não contou historinhas. Olhou fundo nos olhos do filho e lhe disse:
– Hoje à noite, vou te mostrar. Você, que já ajuda na roça, tem idade pra saber.
De noite, chamou o filho, sentou-o num banquinho de madeira ao lado da cama. Deitou com o marido Manuel e os dois começaram a trocar carícias. Fizeram amor diante dele. Thini-á, muito tempo depois, ainda vive com intensa emoção aquele momento:
– Eu nunca tinha visto aquilo, nem podia imaginar. Fiquei muito feliz de saber que eu era fruto de um ato amoroso como aquele, bonito, vivido com tanta delicadeza, com tanta poesia, com tanta naturalidade. Aliás, minha mãe nunca falava em “fazer amor”, mas em “viver o amor”.
O pai Manuel completou, então, o processo de formação. Com uma das mãos ainda molhada de esperma, ele segurou na outra uma semente de feijão-guandu, conhecido como “ervilha de pombo”. Exibiu as duas mãos e perguntou ao filho:
– Qual é a diferença?
– São sementes.
– O que precisa pra plantar?
– Escolher a semente, revirar a terra, fazer uma cova e enterrar.
– E depois?
– Adubar.
– O que mais?
– Tratar a plantinha e acompanhar o crescimento.
– E depois?
– Já disse tudo.
– Não! É preciso ainda amar e cuidar dela. Me diga, então: terra é macho ou é fêmea?
– É fêmea.
– Tá certo, é fêmea. A terra tem tudo que a mulher tem. É fértil, é bonita, é generosa. Se receber a semente e for amada, agradece e dá frutos. A terra é tão sagrada como a mulher. Nunca faça seu sagrado sofrer, trate as duas com amor, dê prazer a elas.
Thini-á soube, então, porque em sua sabedoria a língua Yaathé chama ‘mãe’ de ytõketãne que significa o começo do meu olhar o mundo e ‘pai’ de ytofketá, ou seja, o começo dos meus passos.
Para onde vou
Um dia, no final de agosto, nos preparativos para o ritual do ouricuri, Thini-á, ainda criança, chorou com a pintura que a mãe fez no corpo dele.
– Mãe,o desenho não está bonito, não está perfeito, está torto!
Ela parou de pintar e apontou:
– Meu fio, olhe aquela planta ali. O que há de imperfeito nela?
Thini-á olhou, olhou, e disse que não havia visto nada de errado. Ela insistiu para que ele observasse com muita atenção para ver se havia feiura. Ele disse que só via beleza.
– E aquele galho torto, ali, na parte de baixo?
– É mesmo! É torto!
– A beleza, meu fio, está naquele galho torto se juntando ao galho reto e que assim formam uma harmonia…você já imaginou se as plantas fossem todas retinhas, certinhas, do mesmo tamanho?
De passagem por Brasília, dona Taci indicou a fonte de sua sabedoria. Convidada para um evento na UnB, participou de uma mesa com filósofos, historiadores, antropólogos. Na apresentação de um deles, foi dito que havia feito seu doutorado em Paris e se formado na Sorbonne. Ela ouviu tudo caladinha. Quando chegou a sua vez de falar disse:
– A minha Sorbonne é a mata. É ali que aprendo tudo, até “fosolofia”.
Sua passagem por Brasília, em abril de 1990, durante o governo Collor, foi para reivindicar do presidente da Funai, coronel Airton Alcântara, recursos para um projeto comunitário.
– Coronel, nunca ocupei a Funai. Agora, vim aqui porque precisamos de recursos para criar ovelhas. Vou logo avisando: meu nome é “quero-porque-quero”. Não aceito um “não”.
O coronel, que gostou do jeitão dela, disse brincando:
– E o meu nome é “Não dou-porque-não-quero”.
– Mas você é meu funcionário. A Funai só existe porque existe índio, se a gente não existisse, não tinha Funai.
– Tá bom! O que é mesmo que a senhora quer?
– Quero uma coisa pequena, uma maquininha de fazer dinheiro pra poder criar ovelhas.
– Ninguém aqui fabrica dinheiro não, todo mundo vive de salário.
– Então eu quero salário.
– Mas dona Taci, pra ter salário precisa trabalhar.
– Mas eu não tou vendo ninguém trabalhar aqui, só gente sentada, conversando, lendo, olhando papel, andando pelo corredor, não tem ninguém plantando na roça, criando animal, tirando palha, fazendo artesanato…
Saiu de lá meio desencantada, com vontade de xingar as pessoas. Perguntou a Thini-á:
– Como é que os brancos se ofendem?
– Eles chamam os outros com nome de animal.
– Mas isso não é xingar…
– É sim, mãe. Eles falam assim: sua vaca, sua galinha, sua piranha, seu burro…
– Mas por que isso ofende? A vaca tem uns peitões tão bonitos, dá leite, dá carne, dá o couro… A galinha bota ovo, alimenta a gente, faz gracinha pro galo… O burrinho é bonzinho, ajuda a carregar as coisas. Eita povo mais doido, que quando quer ofender, elogia.
A enciclopédia
Ela percorreu as repartições de Brasília – Funai, UnB, Ministério da Agricultura – trajando apenas um vestido de alcinha, sem calcinha, que ela nunca usava. Sentou. O filho advertiu:
– Mãe, fecha a perna, tá tudo aparecendo, tão olhando.
– O que é que tem? As pessoas nunca viram? Que bom, meu fio. Nessa idade, eu pensava que não tinha mais nada pra chamar a atenção. Que bom que ainda tenho alguma coisa que interessa ver.
Voltou para Pernambuco, em companhia do filho, que dias depois anunciou seu retorno ao Rio de Janeiro, onde morava. Ela o aconselhou a buscar uma mulher ali, na aldeia, para plantar nela uma semente, queria mais um neto. Thini-á explicou que não podia ficar, precisava ir, ansiava por novos conhecimentos.
– Ah, então o que você quer não é uma mulher, é uma “ciclopédia”, disse ela, encantada com a palavra nova que havia aprendido em Brasília.
Dona Taci foi chamada às pressas por um pequeno comerciante local, de Águas Belas, que queria umas rezas, umas garrafadas para umas dores que estava sentindo. Satisfeito com o resultado final, perguntou:
– Quanto lhe devo?
– Não é nada não.
– Faço questão. Escolha aqui na loja um cobertor.
Dona Taci viu que os cobertores eram todos de qualidade duvidosa, ralos, quase transparentes, daqueles usados por moradores de rua ou pelos caminhões de mudança para proteger os móveis. Sagaz, disse que não se dava bem com cobertor novo, que gostaria de um usado por ele, dono da loja, para ficar com a lembrança do cheiro dele. Ganhou um bom cobertor.
– Meu fio, fiz isso, porque sabia que dono de loja não usa cobertor ralinho.
Óculos Fulni-ô
De três em três meses, vinha à aldeia um ônibus todo equipado trazendo assistência médica. Os fulni-ô aproveitavam para se consultar. Dona Taci fez um check-up. Implicou com o nome do médico, o doutor Rovésio Pardellas, a quem chamou de doutor Ferroso.
– Por que o senhor tá apertando meu peito? O senhor não tem mulher não?
– É pra saber onde tá doendo.
– Mas quem tem de saber onde está doendo sou eu. Foi pra isso, que estudou tanto?
Dona Taci queria porque queria usar óculos, embora não precisasse, mas achava bonito. Na caravana médica, havia um oftalmologista que dilatou suas pupilas, botou colírio, e voltou no dia seguinte, trazendo uma armação sem lentes. Colocou nela para provar o tamanho.
– Já estou enxergando melhor, estou vendo tudo – disse dona Taci.
Ela, na realidade, para ver o mundo, só precisava mesmo da lente fulni-ô. Uma semana após sua morte, em conversa telefônica com o filho, que foi a Águas Belas para o enterro, lembramos dessas e de outras histórias, algumas impróprias para menores. Essa sábia, que agora nos deixou, desceu o Rio Ipanema, entrou no Velho Chico e desaguou no mar, onde foi se juntar, na grande cetutxiá, ao seu Manuel, falecido em 1985. Que descanse em paz!
P.S. – Relembramos alguma dessas histórias com Mariana Kutassy, vizinha de Thini-á em Muriqui, que me deu a notícia da viagem de dona Taci.