Por Ribamar Bessa:
Esta não é a primeira vez que converso com o bispo de Chiapas (México), frei Bartolomé de Las Casas. Há mais de trinta anos, em 1984, entrevistei-o para o Porantim, jornal editado em Brasília. Naquela ocasião, numa reunião tensa, a antropóloga Berta Ribeiro esfregou a entrevista na cara do Nelson Marabuto, um policial de carreira que nunca tinha visto um índio, mas era o presidente da Funai. Essa entrevista foi publicada em Berlim pela revista Lateinamerika Nachrichten (1985) com o título Indianische Volkerwerden massakriert Interview mit Las Casas.
Como foi possível a entrevista se o frei dominicano nos deixou em 1566, quando morreu aos 92 anos, depois de conviver quase meio século com os índios do México e do Caribe? Encontrei Las Casas na Biblioteca Nacional de Paris, onde está conservada sua obra. Lá, ele permanece vivo. Respondeu à fala preconceituosa da atual secretária de Educação do Mato Grosso, Rosa Neide, e criticou as presepadas de Kátia Abreu, Eduardo Cunha e outros. Essa interlocução só foi possível, porque foi construída uma ponte no tempo entre o séc. XVI, onde reside a ideologia dos brasileiros mencionados, com o séc. XXI, onde reverbera o pensamento de Las Casas, com notável vigência.
A resposta de Las Casas, defensor incondicional dos direitos indígenas, é feita com argumentos que atravessam séculos e dialogam com disciplinas contemporâneas como a antropologia e a etnohistória. Ela se situa no contexto da luta política, por isso é também apaixonada, carregada de superlativos, de amor aos índios e de crítica implacável aos conquistadores, extensiva ao agronegócio e à bancada ruralista. Ele publicou, entre outras, a Brevíssima relação da destruição das Índias Ocidentais pelos castelhanos e a História das Índias, em cinco tomos. Retirei de seus livros as respostas atualizadas aqui pelas perguntas.
P. – Imagine, padre Las Casas, uma secretária de Educação, que devia zelar pela qualidade do ensino, justifica a nota baixa do Mato Grosso no IDEB, alegando publicamente que é porque os alunos de lá tem “origem indígena e quilombola“. Ela repete, entre outros, o cronista Gonzalo Oviedo, que nunca conversou com os índios, mas sugeriu que eles eram burros e desmemoriados. É isso mesmo?
LC – “Tem-se por notório que todos índios são inteligentíssimos e tem memória imortal, lembrando-se de fatos que ocorreram há muitos anos. Se Oviedo que não conhece nenhuma língua indígena, ainda assim acha que os índios não tem memória, é porque (irônico) isto só pode lhe ter sido inspirado por revelação divina”. (F, t.5,pg.114)
P. – Padre, não quero fazer fofoca não, mas diante da defesa dos índios hoje quando suas terras invadidas pelo agronegócio, a senadora Kátia Abreu, ministra da agricultura, diz que eles são violentos. O Sr. acha que podemos comparar os índios com os jagunços e os pistoleiros do agronegócio e a polícia do Paraná?
LC – “Os índios são humildes, pacientes, pacíficos e quietos. São os povos mais delicados, doces, mansos e ternos que eu vi na minha vida, em toda a face da terra. Nem os filhos de príncipes e senhores, criados entre nós com todo o mimo e delicadeza, são mais delicados que eles”. (A.pg.4-5)
P. – Muitos deputados não pensam assim. Há dois anos, quando os índios ocuparam o plenário da Câmara, parlamentares fugiram em debandada espetacular mostrada pela TV. Um deles, Chiquinho Escórcio (PMDB-MA, vixe, vixe), encagaçado, jurou que os índios eram violentos. Cadê a delicadeza? Exemplifique.
LC – “Se o índio está dormindo e o outro deve despertá-lo, não o faz abruptamente para não incomodá-lo, mas ficará durante uma hora puxando-o levemente pela camisa ou manta se está vestido. Caso contrário, balança o seu pé suavemente pouco a pouco, acompanhando este movimento com palavras ternas e em voz baixa até despertá-lo, sem que ele sinta”.(F,t.5,pg.114)
P. – No recente conflito entre os Tupiniquim e a fábrica de celulose Aracruz, no Espírito Santo, foi feito campanha contra os índios rotulados de preguiçosos, exatamente como escreveu Oviedo e reforçou dona Rosa Neide.
LC – Quanto a não ser de muito trabalho, nós lhe concedemos com prazer, porque pela sua própria natureza os índios eram delicadíssimos, como filhos de príncipe (…) com muito pouco trabalho conseguiam com grande abundância todas as coisas de que necessitavam. O muito tempo que lhes sobrava, supridas suas necessidades – porque não infernizavam suas almas para acumular riquezas e amealhar fortuna – era ocupar-se com exercícios honestos como brincar (…), bailar, dançar e cantar, recitando todas as suas histórias sobre coisas passadas. A ociosidade de que fala Oviedo não era vício, mas sinal de virtude e de viverem mais de acordo com a razão natural do que viviam os espanhóis (F, t.5, pg.111).
P. Se eu o adicionasse como meu amigo no Facebook, que só será inventado daqui a cinco séculos, o Sr. constataria a onda conservadora nas redes sociais que repete a mesma lenga-lenga de Oviedo sobre a preguiça dos índios.
LC – “Para nós, que queremos entesourar riquezas e amontoar bens temporais, devido à nossa ambição e avidez insaciável, aqueles povos podem ser julgados ociosos, mas não pela razão natural. Eram povos acostumados a trabalhar pouco, mas viviam com abundância de alimentos. Os espanhóis estavam tão ávidos para enriquecer e exigiam-lhes trabalhos intoleráveis, como os das minas de ouro, que são trabalhos infernais. E os índios foram forçados a passar de um extremo ao outro. Qualquer um pode julgar se eles tinham ou não razão de se sentirem explorados, fugindo para os montes. E porque fugiam da vida infernal e desesperada, nasceu e tomaram os espanhóis o princípio para difamá-los como ociosos e preguiçosos” (F.t.3, pg.399).
P. Padre Las Casas, o Sr. tem sorte de não conhecer Eduardo Cunha (PMDB, vixe-vixe) presidente da Câmara de Deputados. Ele quer transferir do Executivo para o Legislativo, ou seja, para a cobiça dos ruralistas, o poder de decidir sobre as terras indígenas, através da Proposta de Emenda Constitucional (PEC-215). Isso torna inviável a demarcação. Sem terra, os índios são explorados. Recentemente, a polícia descobriu 800 índios guarani trabalhando numa empresa de cana-de-açúcar em Mato Grosso do Sul em regime de semiescravidão.
LC – “O diabo não pode inventar nenhuma outra pestilência pior para destruir, consumir, matar e despovoar toda a América. Os espanhóis repartiram os índios aos cristãos como se eles fossem vacas ou cabras (F, t.2.pg.163), como se os índios, animais racionais, fossem alguma madeira que se cortasse das árvores ou manada de ovelhas” (F.t.3,pg.220). Repartiam os índios para trabalhar nos campos de algodão: os homens para semear e lavrar, as mulheres para fiar e tecer, não escapando nem as mulheres grávidas, nem as paridas” (F.t.3,pg.286). E até mesmo as bestas costumam ter um tempinho de liberdade para pastar no campo e os nossos espanhóis nem sequer isto concediam aos índios” (F, t.3, p.78).
P. O cacique kayapó Nhaket Mekrangnotire enfrentou o Cunha, dizendo que ele e a bancada ruralista querem “destruir os índios e vai ter muito sangue correndo”.
LC – “Quem podia contar as fomes e aflições, tratamentos maus e cruéis que não só nas minas, mas em todas as instâncias e onde quer que trabalhavam padeciam os desventurados? (F.t.3, pg.206). (…) Pereceram durante os 46 anos em que estive presente (entre os índios) mais de 15 milhões de almas sem fé e sem sacramento e despovoaram mais de 3 mil léguas de terra (B, pg.59).
P. Em 2008, houve uma polêmica no Brasil quando o STF decidiu pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na época, se discutiu até mesmo o papel histórico do colonizador português. O Sr. tem informações sobre o Brasil?
R. – (Desculpando-se antes por conhecer a conquista do Brasil apenas através de alguns cronistas, entre os quais João de Barros) “Os portugueses queriam que os índios recebessem a fé na porrada (sic), ainda que lhe pesasse a forma como Maomé introduziu no mundo a sua seita… Suspeito que os portugueses, sob o pretexto de dilatar a fé cristã, buscavam despojar o Brasil do ouro, prata e especiarias que tinha e outras riqueza, além de usurpar aos índios seus territórios e sua liberdade como nós, os castelhanos, o fizemos. Os portugueses sempre encontraram gentis milagres para confirmar a doutrina que os missionários haviam pregado: roubá-los, cativá-los, queimá-los e despedaçá-los. Seria bom perguntar se foi por este caminho e com estas ameaças que eles, portugueses foram chamados para a fé” (F,t.2, pg.456).
P. Padre Las Casas, o Sr. vai ser acusado de exagerado e louco por denunciar essas atrocidades… Seus livros não entrarão nas escolas administradas pelas Rosas e pelas Neides.
R. “Isso tudo, quem, daqueles que vão nascer nos próximos séculos, acreditará? Eu mesmo, que escrevo e vi e sei muito mais do que conto, agora me parece que não foi possível, mas já é um fato necessário por nossos grandes pecados e será bom que com o tempo o choremos”. (F,t.3, pg.219).
P.S. Agradeço a Gleice Antônia de Oliveira pela dica e pela postagem da índia aqui reproduzida.
Obras consultadas escritas por D. Fray Bartolomé de Las Casas:
A) “Brevissima relación de la destruyción de las Indias Occidentales por los Castellanos. Sevilla, 1552, Edição em pergaminho na Biblioteca Nacional de Paris (BNP).
B) Treynta proposiciones pertenecientes al derecho que la iglesia y los Príncipes christianos tienen contra los infieles. Barcelona. 1646. BNP
C) Una disputa entre el Obispo y el Doctor Gines de Sepulveda sobre que el Doctor contenia que las conquistas contra los índios eran lícitas y el Obispo, por el contrário, que eran injustas e iniquas. Barcelona. 1646. BNP
D) Tratado que escrivio por mandado del Consejo Real de las Indias sobre la materia de los índios que se han hecho esclavos por los castellanos. Barcelona. 1646. BNP
E) Remedios que refirio por mandado del Emperador al Ajuntamineto de Prelados que mandó juntar en la Ciudad de Valladolid el año 1542 por la reformación de los índios.
F) Historia de las Indias ahora por primera vez dada a luz por el Marques de Fuensanta del Valle. Madrid. Imprenta de Miguel Ginesta. 1875 (5 tomos)
G) Alguns capítulos de la Apologetica História (tomo V da obra anterior)
H) De las antiguas gentes del Peru. Madrid. Typ Manuel Hernandez. 1892