A banca de tacacá – me entendam bem – não era apenas um lugar onde se ia tomar tacacá, como pensa o simplório. Era muito mais do que isso. Era um templo, um santuário da fofoca. Isso em Manaus, cinquenta anos atrás, quando se cumpria sempre um ritual: a gente saía de casa ao entardecer levando, às vezes, a própria cuia pintada, made in Monte Alegre (PA). Aí, na banca, entre um gole e outro de tacacá, se falava tanto da vida alheia, mas tanto, que a língua ficava entorpecida e os lábios dormentes. A anestesia era creditada ao jambu, mas sabemos que a boca tremelicava por causa do disse-me-disse.
O freguês ia à banca em busca do mexerico. Sal, pimenta murupi e tititi eram os temperos do tacacá feito com tucupi, goma de mandioca, camarão e jambu. As tacacazeiras, sacerdotisas desse ritual, eram a Nega Vitória, com banca ao lado do Cine Odeon, a Maria Portuguesa em frente ao Guarany, a Preta Idalina na Praça XIV e muitas outras que mereceram algumas páginas antológicas de André Araujo em sua “Introdução à Sociologia da Amazônia”, de 1956.
Mas a maior fofoqueira entre todas era – não duvide – dona Alvina, do bairro de Aparecida. Ela não possuía o physique du rôle das tacacazeiras, que em geral eram fartas e generosas de seios e ancas. Dona Alvina, ao contrário, era magrinha e espigada, mas sua banca alimentava a freguesia com bom tacacá, banana frita no palitinho, croquete, bolo de mandioca, tapioca e, pra rimar, muita fofoca.
Fofoca – por favor, não me interpretem mal – não era só maledicência. Havia quatro tipos. O primeiro tipo era notícia pura. Num tempo em que quase ninguém lia jornais, que não havia ainda rádio de pilha, que a televisão não chegara a Manaus, a banca de tacacá era um centro de informações sobre o que acontecia no Amazonas, no Brasil e no mundo. Era o lugar onde você ficava antenado. Foi numa banca de tacacá que fiquei sabendo, em 1954, do suicídio de Getúlio Vargas e da derrota do Brasil para a Hungria, no mundial na Suíça. O arauto foi o Pedro Marceneiro.
Pedro Lambança
Pedro Marceneiro, também conhecido como Pedro Lambança, tinha um rádio Philips, grande, com uma caixa de madeira vistosa fabricada por ele mesmo. Era um rádio, cuja válvula vivia queimando, originando uma recepção fraca, em baixo volume. Pra piorar, o capacitor precário provocava ruído de fundo, um zumbido, um chiado perturbador. Ainda por cima, era um rádio manhoso, só funcionava quando queria. Precisava de umas tapinhas no gabinete pra começar a falar. Era movido a porrada, que nem mulher de malandro.
Numa tarde, Pedro Lambança chegou esbaforido na banca da Dona Alvina, gritando desesperado: – “A Hungria eliminou o Brasil por 4×2”. Parecia que o mundo tinha acabado. Zé Buchinho, que tinha encaçapado vários tacacás e croquetes, anotou os nomes dos autores dos seis gols e com uma cuia na mão, servindo de microfone, irradiou toda a partida, inventando lances geniais, com tanto realismo, que parecia de verdade. De vez em quando, interrompia para os comerciais: “A Casa Tem Tem, do pobre e do rico também” ou “A Banca da Alvina, onde só tem gente fina”.
Foi na banca de dona Alvina que ficamos sabendo de fofocas federais como o tiro no pé do Carlos Lacerda e logo depois, no final de agosto, o tiro que Getúlio Vargas disparou em seu próprio peito. Quem ouvia rádio, trazia a novidade para a banca, que fervilhava e borbulhava com comentários abalizados.
Mas havia ainda um segundo tipo, a fofoca municipal: eventos locais que, embora reais, jamais seriam noticiados pela rádio e que tinham guarida na banca de tacacá, como foi o caso da tentativa de suicídio do Sansão.
Se não me falha a memória, Sansão morava na Matinha. Era um cara pintoso, topete de Elvis Presley, dirigia um jipe vermelho e namorava a Mariona do Beco da Escola, num agarramento escandaloso que não escapou aos olhos observadores de dona Alvina. Num belo dia, ele perdeu sua Dalila para um bancário do Beco da Bosta. Desconsolado, conseguiu com o Américo Loureiro uma porção de carbureto dizendo que era para soldar metais, e ingeriu, segundo uns, ou fingiu ingerir, segundo outros, o ácido abrasivo, lambuzando com ele a boca, que ficou toda branca. Por via das dúvidas e por outra via, deram-lhe uma lavagem estomacal e pespegaram-lhe o apelido de Carbureto, que ostenta até hoje.
O terceiro tipo de fofoca eram os inventos, como o amor do Petel pela sua cunhada Leonor, cantado em prosa e verso na banca da dona Alvina. A imaginação dos vizinhos que gostavam de murmúrios, futricas, mexericos, inventou esse amor, que se existia, era platônico. Petel jamais colocaria chifres no próprio irmão, embora na banca de tacacá houvesse quem espalhasse o contrário, dizendo que ele brechava a Leonor no banheiro, de uso comum, com paredes de ripa, que ficava no quintal.
Templo da fofoca
O quarto tipo de fofoca, mais sofisticado, no qual dona Alvina se tornara especialista, era algo inédito. Não registrava um evento – o acontecido, nem um invento – o não-acontecido, o boato, o rumor. Não! Previa aquilo que COM CERTEZA ainda IRIA acontecer.
Num furo de reportagem, Alvina profetizou, com seis meses de antecedência, que a Terezona ia engravidar e que o pai era um padre. Isso mesmo, um padre, que puxava as novenas nas terças-feiras na igreja de Aparecida. Não deu outra. Alvina foi a maior repórter da Paróquia. Apurava bem, fazia entrevistas, checava os dados, mas sobretudo sabia analisá-los e fazer previsões.
É que dona Alvina parecia ter um telescópio, que podia olhar em curva. Lá da sua banca, por exemplo, ela via o Geraldão, o rei das caboquinhas, com sua farda de oficial do CPOR, acochando as meninas, escondido num escurinho detrás da igreja. Alvina sabia de tudo e não guardava segredos: as cartas perfumadas, os encontros furtivos, as lágrimas no travesseiro, os poemas de amor de JG de Araújo Jorge e os boleros de Anísio Silva.
A fofoca de dona Alvina, se fosse hoje, seria certificada com o ISO 9001:2008, um modelo de garantia para satisfação do freguês. Atestado de virgindade assinado por ela valia mais do que qualquer exame ginecológico. Ela não passava nada adiante sem antes conferir a origem, cuidava da vida alheia com senso profissional e seriedade. Sua forma de transmissão não era apenas verbal, mas gestual: olhares expressivos, cutucões, cotoveladas, beiço esticado, que complementavam a informação.
Por isso, sua banca, na esquina da Alexandre Amorim com a Xavier de Mendonça, era frequentada por gente ilustre. O pintor Moacir Andrade e o poeta Luiz Bacelar, quando abriam a porta de suas respectivas casas, davam de frente com ela e não resistiam a um dedo de prosa. Migraram depois para o Tacacá da Dona Maria, na Ramos Ferreira, frente à Academia de Letras, onde Berinho, o eterno Secretário de Cultura, leva os gringos para tomar o “Take Khak’ka, a soup common to Nothern Brazil”.
Tacacá era tucupi, jambu, goma, fofoca e diarreia. O resto é prosopopeia. Hoje se toma bom tacacá em Manaus, inclusive em shoppings: Tio João na Darcy Vargas, Gisela na Praça São Sebastião, Adalgiza na Praça da Polícia, Hilda e Tia Socorro no centro e até o japonês Ishiba no Eldorado.
Eis o que eu queria dizer: deviam levar dona Alvina para a região serrana do Rio, onde morreram quase 800 pessoas. Ela seria mais eficaz que radares planejados para prevenir desastres ambientais que não foram instalados. Por outro lado, não funcionou o sistema meteorológico de Petrópolis para medir o nível dos rios, a umidade do ar, a velocidade dos ventos e a quantidade de chuvas, já que 19 estações foram desativadas, porque a burocracia não chegou a um acordo sobre quem devia operá-las.
Conservamos o bom tacacá, mas perdemos o templo da fofoca, até mesmo no Amazonas. O eleitor que votou no Amazonino Mendes (PTB,vixe, vixe), por exemplo, não usou a sabedoria da dona Alvina para prever a merda que ia dar sua gestão na prefeitura. Eis o que eu queria dizer: tenho saudades da dona Alvina.
Passou um filme na minha cabeça. Dei rédeas a imaginação e, por alguns minutos, revivi minha pacata e brejeira Manaus . Que saudades!O tal do Negão ajudou a destruir tudo isso!