Djalma Batista, o filho, com as duas mãos empalmadas encobrindo o rosto, repetia muitas vezes a frase, prolongando os erres, como se isso pudesse potencializar o horrrorrr. Foi numa discussão apaixonada em 1964, no Colégio Estadual do Amazonas, depois da aula de História no curso Clássico. A questão era saber por que o Brasil era tão atrasado em relação aos Estados Unidos.
– “A culpa é de quem nos colonizou, os portugueses são inferiores aos ingleses” – afirmei com aquela sapiente empáfia que se tem aos 16 anos. Meu colega e amigo foi à loucura, mostrando performaticamente seu horror, mas não dei o braço a torcer.
No dia seguinte, ele trouxe mais argumentos. Retirou da biblioteca de seu pai e me emprestou “Bandeirantes e Pioneiros”, de Viana Moog. Era uma época em que a gente ainda lia, não havia televisão em Manaus e nem se sonhava com a internet. Devorei o livro que compara os dois tipos de colonização e mergulha na história, na geografia, na economia, na cultura, na religião, na ética dos dois países. Os portugueses vieram ao Brasil inicialmente para enriquecer e voltar, enquanto os pioneiros ingleses queimaram os navios e permaneceram em território norte-americano.
Embora este livro escrito em 1954 possa ser lido hoje com certas ressalvas, foi o suficiente para que eu mudasse minha opinião simplória e preconceituosa. Seu autor, um gaúcho de São Leopoldo, viveu dois anos no Amazonas para onde fora deportado na ditadura Vargas. Só pude conhecer sua obra graças à biblioteca particular de Djalma da Cunha Batista e à generosidade de seu filho Djalma Limongi Batista.
Bíblia da floresta
A lembrança agora de Djalma da Cunha Batista (1916-1979), médico, escritor, cientista e, sobretudo, um sábio, se deve ao fato de que há cem anos ele nascia em Tarauacá (Acre) e no próximo sábado (20) lembramos sua morte. Ele nos deixou, entre outros, “O Complexo da Amazônia”, tão importante para a nossa região quanto o livro de Viana Moog o é para o Brasil.
“O Complexo da Amazônia” (1976–Editora Conquista) é uma espécie de “bíblia” para estudiosos interessados em entender a pan-amazônia, a floresta, os índios, as cidades e seus mistérios e, talvez por isso, a 1ª edição logo se esgotou. No prefácio, Arthur Reis destaca “a pesquisa direta no campo e o trabalho de gabinete” do autor que analisa a depredação do ambiente e a ignorância dos predadores.
No prefácio da segunda edição (2007-Valer/INPA/EDUA), Renan Freitas Pinto comenta o pensamento crítico, a surpreendente atualidade e a forma inovadora da obra ao interpretar a complexidade da Amazônia. Com método interdisciplinar, o doutor Djalma “combina, de forma sempre satisfatória, a história e a geografia, a antropologia e a medicina, a economia e a ecologia, o conhecimento indígena tradicional com as inovações científicas e tecnológicas” para demonstrar que “continuaremos pagando caro se o desenvolvimento regional não estiver apoiado em sólido conhecimento de sua diversidade natural e sociocultural”.
Médico itinerante do SPI – Serviço de Proteção aos Índios (1946-1950), Djalma Batista conviveu com os índios com quem muito aprendeu. Professor de Patologia da Faculdade de Medicina (1967-70) publicou 35 artigos em revistas científicas nacionais e estrangeiras sobre tuberculose em Manaus, parasitose amazônica, paludismo e outros problemas médico-sociais.
Durante anos, “O Complexo da Amazônia” fez parte de minhas aulas na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e no Instituto Christus. Meus alunos da disciplina História da Cultura e dos Meios de Comunicação foram até a casa de Djalma Batista entrevistá-lo para um trabalho sobre o livro. Já adoentado, meses antes de morrer, ele os recebeu duas vezes. Depois, escreveu cartinha de próprio punho sobre uma folha de papel almaço, a caligrafia firme parece mais com letra de professor que quer ser compreendido do que com letra ilegível de médico.
A quase veneração por Djalma Batista e tudo o que ele simboliza me fez guardar o manuscrito cuidadosamente. Agora, aproveito a comemoração de seus 100 anos de nascimento e torno a publicá-lo em alguns trechos.
O bilhete
“Andei inspirado quando dediquei “O Complexo da Amazônia” aos estudantes e professores das universidades da região, onde está se formando a liderança que se constitui, aceleradamente, a sua elite dirigente e em quem deve repousar todo o processo de desenvolvimento”.
“Bem haja o prof. Bessa, do Curso de Comunicação Social, que distribuiu a seus alunos a tarefa de conhecer e interpretar a Amazônia. Atendi, com desvanecimento, a entrevista que me foi dado manter com o grupo encarregado de estudar a Amazônia extrativista, que me formulou perguntas inteligentes e procurou, nas fontes modestas dos meus conhecimentos, complementação e dados para o seu trabalho”.
“Li este trabalho que representa uma verdadeira monografia, com a maior alegria e proveito. E venho louvar o esforço de seus integrantes, de anotarem, gravarem e ajuntarem os seus próprios raciocínios ao assunto da entrevista e ao que leram”.
“Marquei, no texto, alguns pontos a esclarecer. Há outros que precisam de maior desenvolvimento. Pergunto, porém: quem sabe tudo sobre a Amazônia? Que trabalho é completo, tratando do assunto?”
“O grupo me declarou honestamente, que se iniciara em amazonologia quando da explicação do professor. E era todo de amazonenses, e particularmente bem dotados (fizeram-me cada pergunta!).
Hoje, Djalma Batista liga o centro à periferia de Manaus através de uma avenida que leva seu nome, mas desconfio que os jovens não saibam que esse cientista foi um profeta e “nem assim livrou-se de, como todo profeta, ser um dia barrado à entrada de um templo, acusado de “comunista”, como escreveu seu filho cineasta uma década depois de sua morte, lembrando o filme Oito e Meio de Fellini quando o pai desce na sepultura e o filho Marcelo Mastroianni apela:
– Pai, não vá embora, ainda é cedo, nós temos tanto para conversar, não vai embora.
Um povo que não cultua e celebra seus sábios tem o Cunha que merece. Nesses tempos bicudos de vale-tudo, sua figura querida de homem público faz uma falta danada. Santa inveja daqueles que tiveram a sorte de conviver com ele mais de perto. A lembrança do filho cineasta que herdou seu nome é uma evidência que, muitas vezes, aprendemos mais em conversas com os colegas ou com um bom livrodo que com o professor na sala de aula.
P.S. Crônica atualizada a partir de texto publicado em fevereiro de 1996, quando Djalma Batista fazia 80 anos de nascimento.