Por Ribamar Bessa:
“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje”. (Oriki citado por Pierre Verger em “Orixás”)
Dilma não é Exu, mas com uma pedra que atirou hoje matou um pássaro em 2011. É que ela decidiu acelerar as demarcações das terras indígenas, o que já devia ter feito no seu primeiro mandato, quando foram criadas apenas 11 terras, a marca mais baixa de todos os governos desde a ditadura militar. Antes tarde do que nunca. No anúncio feito na cerimônia de instalação do Conselho Nacional de Política Indigenista, nesta quarta (27), o ministro da Justiça, Eugênio Aragão, reconheceu que as falhas nesse campo se devem às alianças construídas com o Congresso Nacional – atualmente desfeitas – que amarravam as mãos da presidente.
Dois dias depois, o pássaro morto ressuscitou? Dilma havia prometido homologar algumas áreas indígenas em cerimônia programada com os índios no Palácio do Planalto nesta sexta-feira (29). Mas na última hora, ela bateu fofo e preferiu assistir a senadora Kátia Abreu na TV Senado, esvaziando o ato que foi transferido para o Palácio da Justiça, com dança dos índios no salão negro, mas sem Dilma e sem as medidas suspensas por “pendências técnicas”, segundo o ministro Aragão que, no entanto, garantiu a publicação de algumas delas no Diário Oficial deste 2 de maio. Tomara.
Quanto tempo Dilma ainda tem para presidir o país com as mãos desatadas, mas ainda com um nó de travagem da Kátia Abreu? Dez dias? Dois anos? No prazo tão curto que lhe resta, quantas pedradas pode dar para corrigir as omissões de ontem? Além das horas para se defender dos temerários abutres que bicam com voracidade sua carcaça, terá tempo hábil para matar outras aves do passado? Depende da noção de tempo com a qual ela vai trabalhar. Se for com o tempo do relógio e do calendário, não. Mas terá tempo de sobra, caso use o tempo dos orixás ou do mundo andino.
Na cordilheira dos Andes, todo mundo sabe que o passado está sempre na frente, é por isso que nós podemos vê-lo. O passado é de múltipla escolha. Já o futuro, que a Deus pertence, é misterioso, vem atrás da gente, na rabiola, por isso não somos capazes de avistá-lo. Nesse sentido, Michel Temer, o traíra, tem razão quando diz que marchamos para o futuro. Efetivamente, com a dupla Temer-Cunha estamos retrocedendo de volta para o futuro, andando para trás no tempo, com algumas conquistas sociais seriamente ameaçadas.
O futuro está chegando. Os índios que preparem seus arcos, flechas e bordunas, porque vem chumbo grosso se Dilma cair. Ruim com ela, pior sem ela. Foi justamente a chapa Temer-Cunha e seus aliados que ataram as mãos da presidente. Embora a Constituição, tão impropriamente invocada pela encapirotada Janaína Paschoal, garanta aos índios o usufruto das terras imemoriais, o Estado nacional tem sido incapaz de fazer cumprir o preceito constitucional e ninguém é acusado por crime de responsabilidade. Além disso, uma Comissão do Congresso do Cunha acaba de aprovar e encaminhar ao plenário a PEC 215/2000 que inviabiliza a demarcação de terras indígenas.
Enquanto a democracia agoniza sepultada por um congresso desmoralizado que dá um golpe comandado por um réu no STF, quatro índios Guajajara da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que defendiam suas terras invadidas por madeireiros, foram assassinados no último mês, entre 26 de março e 22 de abril: Aponuyre, um menino de 16 anos, morto a tiros; Genésio, 30 anos, com pauladas e um tiro no tórax; Isaías, 32 anos, morto a facadas e Assis, 43 anos, morto a pauladas. Um quinto índio, Joel Gavião Krenyê, morreu, ao que tudo indica vítima de uma emboscada.
O CIMI – Conselho Indigenista Missionário – denunciou que “há anos, os cerca de dez mil indígenas Guajajara e Awá que vivem na TI Arariboia, sofrem com a extração ilegal de madeira e com a violência dos madeireiros da região”. Por isso, os Guajajara criaram, em 2008, o grupo dos Guardiões para proteger seu território invadido por serrarias e carvoarias. De lá para cá já foram assassinados 21 índios e incendiado criminosamente 45% do território da TI Arariboia.
Todos esses crimes permanecem tão impunes quanto os praticados por Eduardo Cunha. “As instituições não estão cumprindo seu papel. Até agora nenhuma investigação foi aberta e a sensação que fica é de impunidade” – afirmou Gilderlan Rodrigues, missionário do CIMI. Quem comanda o Brasil é o coronel Saruê, do Velho Chico. O JN virou novela e a novela virou telejornal.
O tempo mental
Suluene Guajajara se queixou:
– “Muitas mulheres idosas não conseguem mais dormir. Algumas passam noites inteiras rezando para não acontecer o pior. Queremos um retorno das autoridades. É nosso sangue que está sendo derramado”.
Resta saber se Dilma pode, hoje, antes de deixar o governo, evitar os assassinatos de ontem e fazer cessar o choro das viúvas e das mães Guajajara. Ela tem ainda tempo para evitar esse derramamento de sangue?
Talvez possam nos ajudar a responder tal pergunta as aulas de literatura na Universidade da Califórnia, em Berkeley, ministradas em 1980, por Júlio Cortázar. Lá, ele discutiu, entre outros temas, a arquitetura do conto, sua dinâmica e uma série de conotações, de aberturas mentais e psíquicas, dedicando um bom espaço para refletir sobre o tempo.
Ninguém sabe o que é o tempo. Kant considera que o tempo em si mesmo não existe objetivamente, é uma categoria exclusiva da razão, somos nós os que construímos o tempo. O tempo só existe, porque nós o inventamos. “O tempo é um problema que vai muito além da literatura e que envolve a própria essência do homem” – diz o escritor argentino, que exemplifica com quatro contos que evidenciam a possibilidade de diferentes tempos. Dois deles são de sua autoria.
O primeiro – “O perseguidor” – narra a história de um músico de jazz, baseada numa experiência vivida no metrô de Paris. Nos dois minutos entre uma estação e outra, Cortázar rememorou em detalhe uma longa viagem feita, em 1942, pelo norte da Argentina. Como podem caber em apenas dois minutos fatos vividos ao longo de semanas, de meses? “Meu tempo interno, o tempo em que tudo isso havia acontecido em minha mente, de maneira alguma poderia caber em dois minutos” – concluiu. Mas coube.
O segundo conto – “A ilha ao meio-dia” – narra a história de um comissário de bordo de uma companhia de aviação que da janela do avião vê sempre, em sucessivos voos, uma ilha grega no mar Egeu, habitada por pescadores. Decide mudar de vida, pede demissão e vai morar na ilha pela qual ficara fascinado. Um belo dia, vê da terra o “seu” avião passar desgovernado e cair no mar. Ele se atira na água e puxa um homem ferido gravemente que se debatia. Quando os pescadores chegam, encontram o cadáver do nosso comissário. Ele morreu no acidente, sem nunca ter pisado na ilha, a não ser no tempo utópico.
O outro conto – “O milagre secreto”, de Borges – relata a história de um escritor tcheco na Segunda Guerra que vai ser fuzilado pelos nazistas. Diante do pelotão, ele lamenta morrer sem ter tido tempo para escrever sua obra-prima, que lhe tomaria pelo menos um ano de trabalho. É aí que começa a criar personagens, a imaginar situação até concluí-la. Quando ele abre os olhos feliz pela conclusão do ato criativo, os tiros são disparados. O que havia durado para os soldados dois segundos, para ele durou um ano de tempo mental, no qual finalizou sua obra.
No último conto – “Aconteceu na ponte do Riacho da Coruja” – Ambrose Bierce narra um episódio da Guerra da Secessão. Soldados decidem enforcar um prisioneiro, passam-lhe uma corda no pescoço e o obrigam a pular da ponte para que ficasse suspenso no ar. Ele pula, a corda se rompe, ele cai no rio e nada para bem longe. Começa demorada viagem por terra até sua casa, onde chega a ver sua mulher. A última frase do conto é: “O corpo do executado balançava no extremo da corda”. Em sua agonia, ele viveu a suposta ruptura da corda que lhe permitiu ir em busca de sua família. Uma vez mais o tempo se estica e se alonga – escreve Cortazar.
Qual o tempo de Dilma e o que ela fará diante do pelotão de fuzilamento ou da forca? A chapa Temer-Cunha anulará as demarcações porventura feitas, alegando que elas não existiram?