“Anhangá me fez sonhar com a terra que perdi”
(Heitor Villa-Lobos, O canto do pajé)
– É importante que a fala de vocês seja ouvida na cidade – diz Vincent Carelli a um líder Kaiowá enquanto dirige Martírio, premiado como o melhor filme pelo júri popular do Festival de Brasília. Ele entrevistou muitos índios em aldeias e na beira de estradas em Mato Grosso do Sul, cujas falas ecoaram, nesta quinta (19), em várias cidades nas quais o filme foi projetado. No Rio de Janeiro, somaram-se a elas vozes presenciais de outros índios, cantos do Coral Infantil Guarani da aldeia Itaxi de Paraty, rezas de Carlos Tukano, filho e neto de pajés, além de reflexões de Ará Reté (Sandra Benites).
Foi no Dia do Índio, na Capela Ecumênica da Uerj. O evento “Sementes de Cura e Ritual de Proteção aos Povos Indígenas”, promoveu encontro de culturas, religiões, gerações. O Coral da Universidade da Terceira Idade (UNATI) interagiu com as crianças guarani e entoou “O canto do pajé”, saudando Tupã, Deus do Brasil, e Anhangá, que alimentou o sonho da volta à terra indígena, coberta por manto protetor por todos os lados: o budista Emilio Mira y Lopez, o sacerdote de Candomblé Márcio de Jagun e o diácono Marcos Gayoso da Pastoral Católica da UERJ reforçaram as vozes indígenas em defesa da terra, da língua, da cultura.
Martírio e Resistência
– O filme, que registra o processo dilacerante do genocídio, documenta a resistência nas vozes de mulheres combativas e na mobilização política dos índios, mostrando a história recente, quando eles foram retirados muitas vezes de suas terras, mas voltaram sempre e nunca desistiram de retomá-las – destacou o antropólogo Rubem Almeida, que conviveu mais de 30 anos com os Kaiowá-Guarani e assegura que eles sabem distinguir os inimigos e os aliados. “O que tá pegando a gente é o capitalismo” – confirma um líder Kaiowá entrevistado no filme por Vincent.
A mesa que discutiu Martírio, aberta por Rubem Almeida, contou com dois pesquisadores do Museu do Índio. Materiais de arquivo manuscritos e de imagens usados no filme, com o registro da expropriação das terras Kaiowá desde a Guerra do Paraguai, passando por Rondon e Getúlio Vargas até hoje, foram ressaltados por Carlos Freire, enquanto massacres e torturas de índios inventariados no Relatório Figueiredo localizado no arquivo do Museu do Índio, em 2013, por Marcelo Zelic do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), foram abordados por Elena Guimarães.
O papel da mídia foi retomado pela mesa “A representação Indígena e Negra na Educação no município do Rio de Janeiro, dez anos depois da promulgação da Lei 11.645”, mostrando o lugar da dobradinha escola e mídia no atropelamento dos direitos indígenas por fazendeiros, pecuaristas e agronegócio em aliança com poder político. Jaime Pacheco, da Secretaria de Educação, trouxe para o debate trechos do editorial de 1929 do Estadão, onde Júlio de Mesquita Filho, qual bandeirante dos tempos modernos, pontifica:
“Não é desejável a contribuição dos pretos americanos para o caldeamento de raças no Brasil. Um contingente preto nesse momento será mais nocivo que útil à obra da civilização em que estamos empenhados. Precisamos de gente para os nossos sertões, mas de gente capaz de melhorar em todos os sentidos a população do país. Não temos preconceito de cor, mas somos obrigados a confessar que os pretos não constituem fortes elementos de civilização, nem garantem à raça tipos aperfeiçoados física, mental e moralmente […]”.
Negros e índios
O preconceito se estendia aos povos originários, seguindo Paulo de Frontin, presidente da Comissão do Quarto Centenário do Brasil, em 1900, que propõe o extermínio dos índios no seu discurso oficial de abertura das comemorações:
“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
O papel da escola na reprodução de tais preconceitos contra negros e índios foi debatido pelos dois outros integrantes da mesa. A Guarani-Nhandewa Sandra Benites, mestre em antropologia, questionou a interculturalidade presente em escolas indígenas, mas ausente do sistema nacional de educação, que deforma a imagem dos índios. Márcio de Jagun, professor de Direito Portuário na Universidade Gama Filho e na UFRJ, autor dos livros Ori – a Cabeça como Divindade e Ewe, a Chave do Portal, discorreu, entre outros tópicos, sobre a repressão às religiões de matriz africana.
O objetivo da escola e da mídia é esse mesmo: “formar e dirigir a massa inculta, forjando a opinião pública, esteio sobre o qual se assentava […] o destino político da nação”, confirma o bandeirante Mesquita, em outro editorial.
Sementes de cura
Um “chega pra lá” no preconceito foi dado na mesa coordenada pelo indigenista Toni Lotar. O budista Emilio Mira y Lopez, que já doou relíquias sagradas tibetanas ao Instituto dos Pretos Novos, realizou um ritual para abençoar e aliviar o sofrimento dos índios. Ele ofereceu agora essas relíquias, denominadas tsa-tsas, para serem enterradas em terras indígenas Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e na aldeia guarani Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Na crença budista, elas podem proteger os seres martirizados e curar o meio ambiente.
O martírio dos tempos coloniais continua até hoje nos crimes cometidos por jagunços e pistoleiros pagos pelos usurpadores de terras, passando pelo período da ditadura (1964-1985) quando pelo menos 8.350 indígenas de dez etnias foram assassinados com a cumplicidade de agentes do Estado. Sofreram com o esbulho de suas terras, remoções forçadas, prisões, torturas, maus tratos, contágio por doenças infectocontagiosas, segundo o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” elaborado por equipe independente do Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade, sob responsabilidade da conselheira Maria Rita Kehl.
Essa mácula para a sociedade brasileira foi abordada na fala do diácono Marcos Gayoso, participante da mesa. Ele lembrou que o papa Francisco solicitou recentemente uma reparação histórica aos índios por parte de seus algozes tanto no período colonial, como nos tempos modernos, o que significa, entre outras medidas, a restituição das terras usurpadas especialmente nos últimos 50 anos.
P.S. – O evento organizado pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas em parceria com o Museu do Índio, foi aberto pela diretora da Faculdade de Educação, Rosana Glat, em mesa mediada por Ana Paula da Silva (Pro-Indio) com a presença de Carlos Freire, representante do diretor do Museu do Índio/Funai José Carlos Levinho, de Jaime Pacheco da Secretária de Educação, de Renato Veras, diretor da Unati e de Telma Simoni do Programa de Estudos e Pesquisa das Religiões (Proeper). O encerramento foi feito por este locutor que vos fala, coordenador do Pro-Indio.