“Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde) tão feias/ de minha pátria,
De minha pátria sem sapatos / E sem meias, pátria minha / tão pobrinha!”.
(Vinicius de Moraes, Pátria Minha, Barcelona, 1949)
Para minha comadre Carol William
Neste sete de setembro, vejo da janela do apartamento pessoas vestidas de verde-amarelo desfilarem na rua em direção à praia, algumas enroladas na bandeira do Brasil. Marcham sem máscaras para a manifestação, com cartazes e faixas agressivas que clamam pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo palavras de ordem do capo. Nenhum protesto contra o preço estratosférico do combustível, do gás de cozinha, da energia, do feijão. Silêncio absoluto sobre o desemprego, a inflação, a crise sanitária e política. Será que Ramiro, o oftalmologista está no meio delas?
Talvez não. Quem está ali é gente da minha pátria pobrinha, pé-de-chinelo, a maioria com sandálias havaianas. Alguns desceram do morro do Cavalão, provavelmente recrutados por milícias paramilitares e digitais ou enganadas por falanges de pastores picaretas. Recuso-me a tratá-los de “gado”, embora marchem como bovinos para o matadouro, sem consciência de que servem de massa de manobra contra seus próprios interesses. Acreditam em fake news, mamadeira de piroca, cloroquina, voto impresso e no giro diário do sol em torno da terra plana. A prova: ele nasce no Leste e se põe no Oeste.
Entre os manifestantes, é certo, há um cordão de fanáticos chamados de “patriotas” por Bolsonaro que aproveita a data cívica para esconder a sua incompetência em implementar políticas públicas. Ele ataca o STF e usa os protestos para tentar se livrar dos cinco inquéritos que envolvem a famiglia: ele próprio, as ex-mulheres e a atual, os filhos “rachadinhas” e os apoiadores suspeitos de crimes. Além disso, duas apurações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Uma dela investiga mentiras disseminadas nas redes sociais com uso de dinheiro público. A outra apura atos antidemocráticos e golpistas.
Espelho da ignorância
Da minha janela, tento entender o que move essas pessoas, parte delas pertencentes a um grupo social antes silencioso, cujas ideias racistas, homofóbicas, negacionistas não encontravam eco na sociedade. Permaneciam sempre caladas e marginalizadas da vida política. De repente se sentem protagonistas da história, empoderados graças a Bolsonaro, “subletrado e espelho da ignorância”, que os representa e que funciona como um “amplificador dos preconceitos” – como escreveu André Pontes, professor de Lógica do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) numa postagem que viralizou.
Como explicar, no entanto, o comportamento de Ramiro, o oftalmologista, a quem procurei depois do feriado pátrio para marcar uma cirurgia de catarata para outubro? Ele, que faz parte da pátria com sapatos, me informou que faria uma pequena incisão no cristalino e removeria a lente natural do olho para implantar uma lente nova intraocular.
– Você vai poder enxergar com qualidade, sem necessidade de óculos – ele disse.
Depois de dar instruções sobre o pré-operatório, o dr. Ramiro puxou papo sobre as manifestações do feriado, me sondando com contido entusiasmo. Fiquei na minha. Sorri. Ele entendeu como aprovação e avançou comentando que o grande problema na política é que muitos brasileiros, notadamente os de esquerda, fazem “torcida contra”, apostam no quanto pior melhor, torcem para o governo Bolsonaro não dar certo, não reconhecem as coisas boas que ocorrem nesse governo.
Não perguntei quais eram essas coisas boas. Fingi concordar e falei aquilo que eles costumam usar para justificar porque o país está desgovernado:
– Pois é, né, não deixam o homem governar….
O dr. Ramiro pegou corda e comentou que a esquerda quer retomar o poder, com ajuda dos ministros “comunistas” do STF, para implantar seu projeto político de corrupção e de autoritarismo. Os bolsominions não olham o seu próprio rabo cheio de rachadinhas e prepotência.
O calor do momento
Ao nos despedirmos, já na sala de espera, a TV mostrava as manifestações indígenas em Brasília contra o marco temporal. O oftalmologista deu, então, o golpe final sem saber com quem falava. Fez quatro perguntas em voz alta para todo mundo ouvir, que já traziam embutidas as respostas:
1.Com todo respeito, gostaria de saber quem está financiando a presença de mais de 6 mil índios em Brasília?
2. Quem está alimentando esses índios?
3. Se querem manter suas tradições, por que ostentam aparelhos celulares mais modernos que o meu?
4. E por que existem manicures nas tribos?
Nem valia a pena informar sobre as “vaquinhas” que professores, antropólogos, indigenistas, médicos realizaram para o deslocamento e o alojamento dos índios em acampamento precário. Incapaz de um ato de generosidade por uma causa nobre, Ramiro prefere enlamear esse gesto de solidariedade, buscando ver “o ouro de Moscou” por trás das mobilizações indígenas. O curioso é que ele não se preocupou em indagar sobre o financiamento público de aeronaves e aparatos de segurança e o uso de toda a estrutura da Presidência para realizar atos antidemocráticos, que não fazem parte das funções institucionais de um presidente.
Calou também sobre arrozeiros, ruralistas, fazendeiros e empresários de vários segmentos que financiaram o ato golpista, apoiando promessa de Bolsonaro de reverter a demarcação das terras indígenas. A previsão dos organizadores era lotar a av. Paulista com 2 milhões de pessoas. o que só não ocorreu – a PM calculou em 125 mil manifestantes – porque o STF mapeou e bloqueou as contas certas e as chaves-pix dos financiadores. Isso obrigou Bolsonaro a pedir penico e dizer que chamou Alexandre de Moraes de “canalha” devido ao “calor do momento”, o que decepcionou sua claque.
A aldeia urbana
Ramiro, coitado, ficou incomodado com dois fatos: os celulares dos índios “mais modernos que o meu” e a existência de “manicures nas tribos”. Referia-se aqui à notícia da tv sobre a inauguração de um salão de beleza na aldeia urbana Kakané Porã, na região metropolitana de Curitiba (PR) chamada de “lixo urbano” por um deputado bolsonarista do PSL (vixe, vixe). A aldeia tem 35 casas dispostas em círculo e uma oca de madeira na praça central e é habitada por índios Xetá, Guarani e Kaingang, que a ignorância de Ramiro ainda chama de “tribo”, um termo em desuso. A aldeia foi documentada num média-metragem por Mariana Fachini (2018).
Aparelhos e equipamentos oftalmológicos fabricados nos Estados Unidos e até na China podem ser usados no consultório sem comprometer a brasilidade do seu usuário, mas os índios deixam de ser índios se tiverem acesso à tecnologia – ele acha. Dele podemos dizer o que Bartolomé de Las Casas disse do cronista Oviedo:
– No puede decir cosa chica ni grande, porque no fué digno de la ver ni de la entender.
É isso aí. Um dos últimos milagres de Cristo foi curar o cego Bartimeu. Só mesmo um milagre pode curar a cegueira do oftalmologista, um profissional com curso universitário, que alguns chamariam de babaca, mas que prefiro tratá-lo como colonizado mental incapaz de ver e entender.
Despedi-me cordialmente dele. Depois telefonei desmarcando a cirurgia. Vou procurar outro oftalmologista. Qual a visão que Ramiro pode restituir a alguém, se é incapaz de ver o Brasil? Ai pátria minha, tão pobrinha!
P.S. 1 – O fato aconteceu. O oftalmologista existe. Usamos um nome fictício para evitar que eventuais pacientes “comunistas” também o abandonem.
P.S. 2 – Mais de 6 mil índios acampados em Brasília acompanharam o voto do ministro Edson Fachin contra o marco temporal; a 2ª Marcha das Mulheres Indígenas; as três casas dos Guarani Kaiowá em Dourados (MS) queimadas por jagunços a mando de fazendeiros. Esses fatos dessa semana podem ser melhor entendidos com a leitura da dissertação de mestrado Memória Étnica e Movimentos Indígenas Contemporâneos: Memória e Resistência de Thamires Pessanha Ângelo defendida nesta quinta (9) no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. UNIRIO. Banca: José R. Bessa (orientador), Amir Geiger (Unirio) e Danielle Bastos Lopes (Uerj)