Por Bruno Dantas (www.migalhas.com.br)
Justamente por navegar nos mares da eficiência, e não no controle estrito da legalidade, é preciso resistir à tentação de substituir o gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo.
A Constituição de 1988 fez clara opção por reforçar o sistema de controle da Administração Pública. As competências do Tribunal de Contas da União (TCU) foram ampliadas qualitativa e quantitativamente, permitindo que o órgão se modernizasse, tornando-se, por merecimento, relevante ator no cenário institucional brasileiro. Mas é preciso resistir à tentação da hipertrofia e exercitar a autocontenção.
Nas últimas três décadas, o TCU deixou de ser órgão preponderantemente burocrático de registro contábil e apostilamento de informações oficiais (fase anterior aos anos 1990) e viveu uma fase intensa e quase solitária de fiscalização de licitações, contratos e obras públicas (anos 1990 a 2010) com a consagração do FISCOBRAS – que encaminha anualmente a lista suja de obras irregulares à Comissão de Orçamentos do Congresso.
A partir de 2005, ações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal começaram a obter êxito em dar consequência penal às irregularidades que o TCU já apontava sistematicamente desde o escândalo do TRT de São Paulo em 1999. Não custa lembrar que no FISCOBRAS de 2009 o TCU já apontava irregularidades graves na Petrobras, que foram desnudadas amplamente em 2014, na Operação Lava Jato.
A chegada de novos personagens para reforçar o combate à corrupção permitiu que o TCU, sem descurar do controle de legalidade, lançasse seu olhar sobre a raiz de inúmeros males: a ineficiência na gestão pública, responsável pelo desperdício de centenas de bilhões de reais em decisões administrativas equivocadas, mal planejadas ou executadas, mas que se escondem sob o ilusório verniz de cumprimento da lei.
Afora as nuances penais, do ponto de vista administrativo, uma política pública que consome recursos do orçamento e não resulta em benefícios para a população é tão condenável quanto uma licitação fraudada ou um contrato superfaturado. Daí porque o TCU tem se esmerado em realizar auditorias operacionais que identificam fragilidades, riscos e oportunidades de aperfeiçoamento na gestão governamental.
Essa nova fase do controle da administração, entretanto, exige do TCU muita autocrítica, muita autocontenção e visão consequencialista. Justamente por navegar nos mares da eficiência, e não no controle estrito da legalidade, é preciso resistir à tentação de substituir o gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo.
É comum que especialistas – como são os auditores – tenham concepções e fórmulas até mais inteligentes para os problemas identificados, mas o controle de eficiência deve mirar processos de tomada de decisão e a razoabilidade dos critérios adotados, tudo examinado conforme padrões científicos e experiências internacionais, sem pretensões salvacionistas.
A hipertrofia do controle gera o que estudiosos vêm chamando de “apagão decisório”, e eu denomino “infantilização da gestão pública”. Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem seus atos questionados. Ou, até pior, deixam de decidir questões comezinhas à espera de aval prévio do tribunal.
Se, de um lado, o controle de legalidade possui contornos bem definidos, de outro, o controle de eficiência típico da administração gerencial é menos preciso e mais subjetivo. Exatamente por isso a autocontenção e o consequencialismo devem ser exercitados, pois órgãos de controle não possuem legitimação democrática para formular políticas públicas e nem autorização constitucional para substituir o Poder Executivo.
Apesar de alguns exageros aqui e ali – felizmente corrigidos pela prudência do Supremo Tribunal Federal –, há sinais eloquentes de que o Plenário da Corte de Contas trilhará a senda constitucionalmente correta de respeitar o espaço decisório dos gestores, sem prejuízo de apontar as críticas que eventualmente sejam cabíveis.
Um case que demonstra essa postura foi o recente acórdão 2.121/17, de minha relatoria, no qual o Plenário fez diversas críticas aos critérios adotados pela ANATEL para escolha dos municípios que receberão investimentos em banda larga decorrentes de termos de ajustamento de conduta, mas não invalidou a escolha, preservando a autonomia da Agência.
A linha mestra dessa decisão revelou a compreensão de que a deferência do controle em relação aos espaços de decisão próprios do gestor não só está mais aderente à distribuição constitucional de funções, como também favorece a inovação e o desenvolvimento da Administração.
Minha convicção exposta no voto-condutor é também a mensagem que deixo para 2018: “o TCU deve ter a cautela necessária para não obstaculizar e burocratizar demasiadamente o procedimento de modo a inviabilizá-lo na prática. Também, repito, não deve analisá-lo com a mesma lupa burocrática com que examina, por exemplo, processos de licitações e contratos, visto tratar-se de um instrumento de gestão negociada”.
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*Bruno Dantas é ministro do TCU. Pós-doutor em Direito (UERJ). Visiting Research Fellow na Cardozo School of Law (Nova York) e no Max Planck Institute Luxembourg for Regulatory Procedural Law. Professor do Mestrado da UNINOVE e do IDP.