– Essa árvore lembra o tronco da Pore hi. Quando começa a envelhecer, troca de casca e fica nova outra vez. Ela descama pra se renovar. Por isso, não apodrece. Tem gente que é assim. Alguns pajés também nunca envelhecem, porque trocam de pele e se revigoram.
Era 1º de maio. Estávamos no Campo de São Bento, em Niterói, onde na noite anterior Davi Kopenawa havia proferido a conferência “Ipa Theã Oni: Flecha para tocar o coração da sociedade não indígena”. Agora, no parque, ele observa cada detalhe daquela árvore majestosa – pau-ferro, segundo o jardineiro uma planta medicinal – que parecia a Pore hi dos Yanomami (Eugenia Flavescens ou Goiabinha), não pelo tamanho, mas pelo tronco duro e tortuoso, cuja casca se descola e se renova continuamente.
Carros trafegam nas ruas em volta do parque cercado por blocos de concreto dos edifícios. Longe de sua aldeia no sopé da “Montanha do Vento” (Watoriki), rio Demini, lá na fronteira com a Venezuela, Davi lê cada detalhe daquela árvore urbana na altivez dos seus vinte metros. Com olhar clínico, circula em volta dela, com quem conversa. Olha pra cima contemplando, silencioso, a copa onde galhos e folhas disputam a luz do sol. Apalpa e abraça o tronco liso cor de mármore, manchado como uma vaca malhada, mas aquele abraço afetuoso só enlaça a metade da base do tronco de três metros de diâmetro.
A árvore ferida
Foi ai que ele notou uma lesão no tronco descamado, decorrente de recente tentativa de assalto no parque. A árvore, como tantos outros seres inocentes no Rio, foi ferida por uma bala perdida. Ela passa bem, mas é mais um indício de que o céu pode desabar, como Davi já havia profetizado na abertura de seu livro “A queda do céu – Palavras de um xamã Yanomami”:
– “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger”.
“Os xamãs – ele prossegue – não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivos para sustentar o céu, ele vai desabar”.
Esse foi o tema central de sua conferência de encerramento do evento organizado pelo Centro de Artes UFF “Brasil: a margem 2019 – Teko Porã Cosmovisão e Expressividades Indígenas”, com exposições de artistas indígenas, filmes, encenações teatrais, minicursos, rodas de conversa, shows, oficinas, feira de artesanato e gastronomia. A “balbúrdia” da ciência e da arte durou uma semana e abriu esperanças no auditório lotado por quem chegou cedo. Porém – ai, porém – o corte de 30% das verbas da Universidade compromete sua reedição. Se não resistirmos, o céu começará a desabar.
O céu desaba
Muitas perguntas prolongaram por mais de três horas um encontro, no qual o conferencista foi aplaudido de pé. Uma delas feitas por alguém que indagou sobre o conteúdo do livro:
– “Leia que você vai saber” – respondeu bem humorado o autor, que depois autografou dezenas de exemplares.
Editado em 2015 em português, são 729 páginas com relatos de Kopenawa em língua Yanomami, recolhidos e traduzidos pelo antropólogo Bruce Albert com prefácio magistral de Eduardo Viveiros de Castro. Trata-se de uma etnobiografia dividida em três partes: 1) “Devir outro” conta como Davi escutou os antigos xamãs que o iniciaram; 2) “A fumaça do metal” relata o contato dos Yanomami com os Napë (os brancos); 3) “A queda do céu” descreve a trajetória de Davi no mundo branco para denunciar a devastação da floresta e de seu povo, profetizando um futuro funesto para o planeta.
Muitos temas foram abordados na conferência de Davi Kopenawa, entre eles o desastre ecológico, o aquecimento global, o garimpo, os massacres dos Yanomami, Krenak, Guarani e Waimiri-Atroari na época da ditadura, o agronegócio, a proposta de uma universidade indígena, os ataques contra a Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI) e o projeto de municipalização do governo Bolsonaro, que “quer nos matar, mas não é só com tiro, é de doenças, como já mataram minha família com o sarampo”.
O povo da mercadoria
Diante da pergunta de um mestrando sobre os sonhos, o sábio Davi Kopenawa comparou as aspirações individuais da sociedade de consumo com a utopia de um mundo melhor para todos:
– O povo da mercadoria dorme muito, mas só sonha com ele mesmo. Sonha em comprar carro, casa, roupas, gasolina, tudo. Seu sonho é consumir, numa relação doentia com a terra, por isso ele mata a floresta, que não conhece, mas está viva e daí vem sua beleza. Se a floresta morre, nós e os napë morreremos com ela. Os brancos talvez não ouçam seus lamentos, mas ela sente dor, como os humanos. Suas grandes árvores gemem quando caem e ela chora de sofrimento quando é queimada. Ela tem coração e respira. Acho que vocês deveriam sonhar a terra.
Para Davi, essa é a razão pela qual o Napë não sonha tão longe quanto os Yanomami, cujo sonho é diferente, como o voo do gavião que voa alto, porque sabe que “foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cujas águas bebemos, foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Foi ele que criou os xapiri para nos proteger das doenças e da morte.
Do auditório, Taily Terena perguntou o que Davi diria para os estudantes indígenas que vivem na cidade.
– Eu perguntaria: a comunidade autorizou vocês? É um projeto individual ou coletivo? A escola do governo é boa, é importante aprender o mundo do branco, como fez Joênia Wapixana, advogada, que luta por nós. A comunidade espera que quem se formou, advogado, médico, dentista, professor, volte pra ajudar. Vocês estão aqui no Rio de Janeiro e alguns não voltam. A minhoca come a alma dessas pessoas que se vendem. É assim que funciona o mundo dos brancos. Tem que ter cuidado, os políticos querem usar a escola para enganar a gente.
Outra pergunta foi sobre as andanças de Davi Kopenawa, que já viajou pela Europa, França, Bahia, pelo mundo inteiro. Com bastante humor – ele é um tremendo gozador – contou que foi à Grécia com Aylton Krenak e que Atenas é uma cidade bonita, mas infelizmente tem muita coisa quebrada, muitas ruínas.
O narrador vive
No dia seguinte, chegando em casa acompanhado de José Ignacio Gomeza Gómez, o Iñaki Charrua, Davi viu algumas peças de artesanato. Tocou nas tramas dos tecidos de fibra de coco que enfeitavam a mesa e nas texturas das cabaças andinas, passou as mãos por esses e outros objetos, como que decodificando como foram feitos, seus matérias, suas técnicas.
Depois, fez um relato performático, quando se recostou na cadeira, quase se deitando, jogou a cabeça para trás, abriu os braços para as laterais, ele era a água que jorrava plena e que refletia a lua e o sol em risos que o atravessavam. Com uma das mãos fazia uma linha no meio do corpo, perpendicular aos braços abertos e ficou por algum tempo nessa posição, contando, repetindo, respirando, fazendo do seu corpo a imagem que queria descrever. Se Walter Benjamin assistisse diria que o narrador ressuscitou. Ou então nunca morreu.
Davi Kopenawa, grande narrador, pai de seis filhos, avô de oito netos, fundador da Associação Hutukara que representa os Yanomami, reconhecido internacionalmente, ameaçado de morte desde 2014, acumula saberes milenares e a força de uma resistência centenária, com sua juventude de sessenta e poucos anos. Com várias flechadas, tocou o coração não indígena. O xamã Davi Kopenawa, como a pore hi, não envelhece nunca. Resiste.