DASAGUÃO, DASAGUINHA E O TIO SAM

Por Ribamar Bessa:

“Toutes choses sont dites déjà; mais comme personne n’écoute, il faut toujours recommencer” (André Gide – Le Traité du Narcisse).

Ninguém o chamava pelo seu sonoro nome de batismo: Rodolfo Dias. Para todos os efeitos era o Dasaguão, apelido proveniente do Departamento Das Águas, onde labutava como encanador na Estação do Bombeamento, lá na Ponta do Ismael. Morava em Aparecida, bairro de Manaus no qual se vive um tempo mítico. Já disse, mas como ninguém me escuta, repito: tudo o que acontece e ainda vai acontecer no planeta já ocorreu nas quinze ruas ou nos treze becos do bairro, como o que agora te conto, que pode ajudar a entender a atual violência nos Estados Unidos.

O filho primogênito do encanador – o Dasaguinha – era menino problemático, encrenqueiro, brigava diariamente, vivia todo esfulepado, cheio de cicatrizes adquiridas nas guerras travadas nas trincheiras dos becos. Foi expulso em 1955 do Grupo Escolar Cônego Azevedo porque aos oito anos, com uma baladeira, atirou um arrebite quebrando a cabeça do Geraldo Pimbinha, que desmaiou, mas foi socorrido a tempo no SAMDU que ficava ali na Joaquim Nabuco. Dona Desidéria, sua mãe, magérrima e anoréxica, ficou horrorizada:

– Não sei de onde esse menino tirou tanta agressividade – disse a mãe em depoimento à Polícia, no velho Casarão da Mal. Deodoro.

Ela não sabia? Santa Desidéria! Não relacionou o comportamento do filho com o do pai, que dias antes, com uma chave inglesa, causara lesão grave no Fernando Gogó. Desaguão era devoto da cachacinha produzida no Beco da Bosta (o que motivou a mudança do nome daquela artéria – artéria é ótimo – para Beco da Indústria). Quando ficava de porre – e ficava um dia sim e o outro também –  virava uma fera. Deixava de ser o cidadão cordial e prestativo que consertava torneiras dos vizinhos. Cheio do chá, esquecia canos, tubos, redes hidráulicas e saía pra porrada com Deus e o mundo.

O xerife

Eis o que eu queria dizer. O Bairro de Aparecida é um retrato da sociedade americana, com uma diferença. Seus 6.996 moradores vivem em 2.222 casas, mas nenhum deles pode comprar armas legalmente, ao contrário da pacata cidadezinha de White Pine, no Tennessee, cujos 2.196 habitantes guardam armas nos 828 domicílios aonde residem. No sábado (3/10), a população diminuiu. Um menino de 11 anos matou a tiros a vizinha de 8 anos, McKayla Dyer porque ela não o deixou brincar com seu cachorro de estimação. Alienado e perplexo, o xerife W. McCoig declarou:

– O menino é normal, não tem qualquer problema mental. Espero que nunca mais ocorra esse tipo de violência.

Espera sentado, porque vai ocorrer. Está ocorrendo. Todos os dias. O menino é normal, a sociedade onde ele vive é que não é. O assassinato de uma criança por outra chocou o mundo, mas não é fato isolado. Recentemente foram vários massacres. Christopher, 26 anos, matou nove pessoas numa escola de Oregon. Dylann Roof, 21 anos, assassinou outras nove numa igreja na Carolina do Sul. Adam Lanza, 20 anos, invadiu uma escola primária em Sandy Hook, disparou mais de 100 tiros e matou 28 pessoas, entre as quais 20 crianças entre seis e sete anos de idade. Depois deu um tiro nos miolos.

Os números registrados no site do Mass Shooting Tracker são alucinantes. Nos últimos mil dias, nos Estados Unidos, foram 994 ataques como esses, que mataram 1.260 pessoas e feriram mais de três mil, numa assustadora banalização da morte. É tão rotineiro que a mídia já não dá qualquer destaque como os tiroteios em várias universidades nesta sexta-feira (9/10). Na Nothern Arizona  University, Steven Jones, 18 anos, matou um colega e feriu três; em Houston, o campus da Texas Southern University foi interditado, após tiroteio que deixou um morto e um ferido.  Tiroteios em Denver, no Colorado e em Gret Falls, Montana. Tudo isso nessa sexta.

– É uma situação muito triste que ninguém pode explicar – disse o xerife do Tennessee.

Pode sim, dona Desidéria! Basta relacionar o fato de Tennessee com outro ocorrido no próprio sábado (3/10), na mesma hora, na cidade de Kunduz, no Afeganistão, quando ataque aéreo americano bombardeou um hospital mantido pela ONG humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), matou 22 pessoas e feriu 37: médicos, enfermeiras e pacientes, entre os quais três crianças.

– A decisão do ataque aéreo foi nossa, da cadeia de comando americano, mas atingiu o hospital por um erro. Lamento profundamente a perda de vidas inocentes. Nunca atacaríamos intencionalmente uma instalação médica protegida – declarou o general John F. Campbell, comandante das tropas da OTAN no Afeganistão. Ele jura que vai fazer uma “investigação exaustiva, objetiva e transparente” e blá-blá-blá.

O fipilhopó

Traduzindo na língua do “p”, o general é um fipilhopó da putapá. Premeditou o ataque. Achava que havia talibãs malocados no hospital e decidiu demoli-lo com bombas, “o que é um crime de guerra e exige investigação independente”, declarou a médica Joanne Liu, presidente da MSF, que tem razões para suspeitar da versão do general.

A mídia impressa publicou as duas notícias separadamente como se não tivessem qualquer ligação entre si. Um leitor atento, ao relacioná-las, pode descobrir que uma explica a outra. O general Campbell, que pratica terrorismo de Estado, é um Desaguão? A Pátria dá mau exemplo ao Desaguinha do Tennessee? Parece que o cidadão comum acaba se espelhando na máquina de matar montada pelo complexo industrial-militar.

O  presidente Obama confessou sua impotência diante da Associação Nacional de Rifles (NRA), que controla a bancada da bala no Congresso, tem quase 5 milhões de membros pagantes e impede qualquer regulamento de posse e uso de armas nos Estados Unidos. Se o Geraldo Pimbinha fosse Gerald Little Cock, em vez de um arrebite de baladeira, teria pegado um tiro nos cornos. Welcome to city of White Pine.

– Cada vez mais os que governam são idiotas, ladrões. A única coisa entre eles e a loucura somos nós. Por isso é tão importante ser jornalista – declarou a Folha de SP o repórter americano Seymour Hersh, de 78 anos, que veio ao Brasil participar de um evento – o Festival Piauí Globo News de Jornalismo no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, realizado sábado (10) e domingo (11). Foi ele que revelou em 1969 o massacre de My Lai, no Vietnã, uma cidadezinha demolida pelo Exército dos EUA, o que levou minha geração às ruas em passeatas de protesto.

As escolas do mundo inteiro deviam levar para sala de aula o testemunho desse jornalista, reforçado pelo pensamento do físico Albert Einstein, que não via qualquer diferença entrar matar na guerra e cometer um homicídio em tempos de paz, ambos igualmente abomináveis.

A guerra, qualquer guerra, representa a barbárie, a selvageria, a incapacidade de resolver os problemas através do “diálogo que é a mais criativa e civilizada invenção do ser humano, mais importante do que a bomba atômica”, segundo Jorge Luis Borges.. Dasaguinha é filho de Dasaguão? Abra o olho dona Desideria! Fique esperto xerife W. McCoig!