O carrasco sempre mata duas vezes, a segunda por meio do silêncio”. Eli Wiesel
Mesmo com 80% da obra já concluída, o governo Bolsonaro decidiu extinguir o Memorial da Anistia Política no Brasil. A ministra Damares Alves declarou que “a obra não vai ser entregue à sociedade da forma como foi planejada, ou seja, como memorial”. Em um jogo de palavras sem sentido, alegou ao Ministério Público Federal (MPF) que o projeto é “contraditório nos seus termos”, pois “anistia significa esquecimento e um Memorial da Anistia seria algo como o Memorial do Esquecimento”.
A construção do Memorial foi compromisso firmado pelo Estado brasileiro diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que há mais de dez anos julgou o Caso Gomes Lund e outros e condenou o Brasil por tortura e desaparecimento de presos políticos. A Corte aceitou então, como reparação moral, a proposta brasileira de criar o Memorial. Para cumprir a sentença proferida, o Ministério da Justiça encomendou à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a execução do projeto em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e o apoio da Caixa Econômica Federal.
As obras iniciadas em 2009 previam a edificação de um anexo e da praça de convivência, além da reforma do prédio da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – o “Coleginho” – para abrigar, em suas instalações, mais de 64 mil processos submetidos à Comissão de Anistia, os arquivos doados por governos e instituições particulares e um arquivo de história oral com entrevistas registradas em áudio e vídeo coletadas pelos pesquisadores, em articulação digital com outros centros de documentação no país.
Pastoral do esquecimento
A pesquisa histórica e museográfica, a produção do material expográfico e o tratamento do acervo da Comissão de Anistia foram integralmente concluídos. No entanto, a Polícia Federal indiciou na semana passada, quatro professores de história, duas servidoras aposentadas e três estudantes bolsistas, sob suspeita de estelionato, falsidade ideológica, desvio, concussão e prevaricação. Os três bolsistas teriam sido forçados a devolver parte do que recebiam. Dessa forma, embora a situação seja nebulosa, foram igualados diante da opinião pública a praticantes da “rachadinha” como Fabrício Queiroz – o desaparecido, Flávio Bolsonaro e seu irmão Carlos, no Rio de Janeiro.
Para complicar, o prédio do “Coleginho”, com mais de 100 anos, apresentou problemas estruturais, estourando o orçamento. Em seu perfil nas redes sociais, a ministra Damares afirmou que o projeto gastou R$ 28 milhões, o que é negado pelo pró-reitor de Planejamento, Maurício Garcia. Ele indica gastos de R$ 12 milhões, registrados no Sistema Federal Financeiro (SIAF). As obras foram interrompidas em 2016 por falta de repasses, mas a UFMG seguiu à risca as determinações do Ministério da Justiça – declarou ao Globo, na terça (17), a reitora Sandra Almeida.
A ação da Polícia Federal tem repercussão midiática que reforça a decisão do governo Bolsonaro, por razões ideológicas, de não inaugurar o Memorial da Anistia, o que rompe o acordo internacional firmado pelo Estado brasileiro. Outros países mantêm abertos museus e espaços de consciência e de memória como Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Alemanha, o Museu do Apartheid na África do Sul e o Museu da Resistência em Amsterdam. Até mesmo no Brasil, foi criado na sede do antigo DEOPS de São Paulo o Memorial da Resistência, nunca visitado por nenhum ministro de Bolsonaro.
Agora, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, inaugura uma espécie de Pastoral do Esquecimento, para determinar o que o brasileiro deve lembrar e o que deve esquecer, à semelhança da Pastoral do Iletramento de seu colega e pastor Marcelo Crivella, prefeito do Rio, que censurou publicação na Bienal do Livro na semana passada.
A arte de esquecer
Se a ministra Damares conhecesse os escritos de um filósofo alemão do séc. XIX, Friedrich Nietzsche, talvez compreendesse a diferença entre o esquecimento como “força inercial” e o esquecimento como “força ativa”. A noção de “esquecimento ativo” sugere que o esquecimento não é uma doença, uma falha da memória, e sim uma porta de acesso a ela. É importante esquecer, mas para isso é necessário saber. A gente só pode esquecer aquilo que a gente sabe. São faculdades distintas, mas complementares, que atuam juntas e compõem uma ação afirmadora da vida.
Nietzsche considera que o esquecimento é uma atividade plena, que favorece a ação. A arte de esquecer, se elaborada em sintonia com a lembrança, nos liberta dos grilhões de uma memória onipresente, permite que vivamos o momento atual de forma intensa e nos impele a novas criações. A atividade da memória é relevante, se for desenvolvida de forma a abrir espaço ao esquecimento, que permite o novo. Só assim, ligado à memória, o esquecimento tem um poder transformador.
O passado não deve agir como uma algema que impede de andar. Um excesso de história limita a ação do ser humano, já que a incapacidade de agir está relacionada à incapacidade de esquecer. É preciso saber esquecer de forma seletiva para viver de forma mais saudável, mas também é preciso saber o que, como e quando lembrar. Nietzsche valoriza o esquecimento, mas não desqualifica a memória, considerando que ambos são forças necessárias para a saúde de indivíduos, povos, culturas. Não se trata de apagar fatos, mas de deslembrar sentimentos.
É isso aí, dona Damares. Perdoar não implica esquecer. Devemos combater o esquecimento, quando ele é incompatível com as exigências do direito e da moral, o que é o caso da atual política deliberada que extingue o Memorial da Anistia para tentar assim apagar os crimes hediondos cometidos por um Estado todo poderoso contra cidadãos já presos e, portanto, indefesos. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, entre 1964 e 1985 ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, invasão de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, prisões, torturas e maus tratos. Não devemos esquecer essas e outras mortes de militantes políticos.
O silêncio matador
Esse tipo de silêncio, que pretende esvaziar a cachola de fatos ocorridos, numa espécie de Alzheimer coletivo, longe de contribuir para criação de novos valores e novas formas de viver, mata as vítimas pela segunda vez como disse o poeta e teólogo Eli Wiesel, prémio Nobel da Paz e sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz.
O Memorial da Anistia em Minas Gerais se inspira no Memorial da Resistência instalado na sede do antigo DEOPS, construído com a assessoria do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. A ideia que prevaleceu foi a de não priorizar a tortura, que efetivamente existiu, nem de glorificar os heróis, individualmente, mas de centrar na luta coletiva, articulando as memórias do passado com o presente.
– O Memorial deve mostrar que apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade. Derrotamos a ditadura” – diz Alipio Freire, um dos ex-presos entrevistados. A decisão da ministra parece indicar hoje, mais do que nunca, que a luta continua.
P.S. – Uma confissão: Nietzsche não é minha praia. Domino sua obra completa tanto quanto a ministra Damares ou o ministro da Educação Abraham Kafta Weintraub, que não sabem bulhufas. O que nos faz essencialmente diferentes é que convivo no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, com muitos colegas, entre os quais Jô Gondar e Miguel Barrenechea, que me apresentaram Nietzsche e, evidentemente, não são responsáveis por minhas leituras apressadas dos seus textos. Sugiro aos interessados leitura mais atenta que a minha.
GONDAR, Jô. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: GONDAR, Jô et al. (Org.). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, pp. 35-43.
BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche – O eterno retorno e a memória do futuro. In: BARRENECHEA, M. A. de. As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, pp. 51-63.