– Professor, eu posso fazer a prova só com charges?
A pergunta inusitada me deixou engasgado. Estávamos numa sala de aula do velho ICHL em 1978. Era a avaliação final na disciplina História da Cultura e dos Meios de Comunicação. A questão formulada pedia que alunos do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas desenvolvessem o tema sobre a indústria cultural e seus efeitos sobre a cultura popular regional, tendo duas referências: os teóricos da Escola de Frankfurt e, para a realidade local, “O Complexo da Amazônia” de Djalma Batista, autor que os alunos haviam entrevistado.
Como dar conta, em charges, de algo tão complexo e abstrato como as “Teses sobre a Filosofia da História” de Walter Benjamin, que havíamos trabalhado em sala de aula numa tradução datilografada feita pelo teólogo alemão Paulo Suess, na época residindo em Manaus? Ou o pensamento crítico de Theodor Adorno?
Surpreendido, hesitei em responder. Afinal, esperava de cada aluno um texto expositivo dentro das normas acadêmicas, como é praxe, e não imagens ilustradas de um cartum. Decidi, no entanto, aceitar o desafio porque, pensando bem, a charge cabia no comentário de um texto que representa a História com uma imagem: a de um anjo. No quadro Angelus Novus desenhado a nanquim, giz pastel e aquarela por Paul Klee, mencionado no artigo de Benjamin, o anjo da História está de costas para o futuro, fitando o passado em ruínas com os olhos esbugalhados, a boca dilatada e as asas abertas diante de um monte de escombros, frente a uma catástrofe que não deixa lugar à esperança. Imagem de atroz atualidade. Dei o sinal verde:
– Vamos tentar. Se você acha que pode comentar o tema com charge, vai fundo.
O Quino Baré
Foi mesmo. As suas charges mostravam que havia compreendido tudo. O essencial estava lá, condensado em imagens que dialogavam com a Mafalda de Quino, cujas historinhas circulavam em jornais do mundo todo, em mais de 30 idiomas, abordando a manipulação da mídia, a lavagem cerebral, a propaganda massiva da TV, a derrota do pensamento.
Alguns chargistas são bons de argumento, mas ruins de traços, o próprio Jaguar com um exagerado senso de autocrítica se coloca nesse grupo. Outros são bons de traço, mas pecam no conteúdo. Mário Adolfo Aryce de Castro – esse é o nome do aluno chargista – reúne as duas qualidades. Fiquei deslumbrado. Nota Dez para o Quino Baré, que com alguns riscos elaborava um discurso potente carregado de ironia, satírico, capaz de explodir preconceitos, de ridicularizar o poder e de nos fazer rir de nós mesmos.
A partir desse dia, Mário Adolfo passou a fazer circular suas charges em sala de aula, abordando temas que questionavam a autoridade na relação professor-aluno, a hierarquia na universidade, mas também a vida, a militância política, sempre com um olhar questionador e sacana. Por trás do traço leve, o riso. Por trás do riso, a crítica.
Chargista até quando escreve, ele desenha imagens com o verbo. Narrou com palavras um fato ocorrido em sala de aula, em junho de 1978, em pleno verão amazônico. O clima abafado, sonolento, o ventilador que range na sala de aula e solta um vento morno, já é quase meio-dia, hora em que macaco assobia, panela no fogo e barriga vazia. Os alunos cansados, com fome, desinteressados. Quem lê, vê as imagens:
– O professor Bessa, entre um cigarro e outro, perdido no emaranhado do viçoso bigode e tirando a cada momento as madeixas de cabelos lisos que cobriam as lentes dos óculos fundo de garrafa, esforça-se pra explicar a teoria de como o poder econômico coopta os meios de comunicação de massa, explora os trabalhadores, bajula a ditadura e deixa o povo na merda. Mas faz uma pausa ao perceber o estado de marasmo e de indiferença dos alunos do 3º período do curso de Comunicação da UFAM. A maioria sonolenta e sem muita vontade de ouvir a eloquência do Babá, que parecia estar pregando no deserto.
– Pessoal, não gostaria de ter que falar isso – advertiu o professor – Eu não acho honesto ganhar meu salário e vocês ganharem os créditos sem que se efetive o processo de ensino-aprendizagem.
Foi aí que Mário interrompeu sua narrativa com palavras-charge que acabaram com a aula:
– Então, ficamos combinados. Passa a grana pra gente e pode ficar com os créditos!
Porantim
Esse era o Mário Adolfo. O episódio rendeu charge. Duas colegas criaram a Editora Artesanal MEG/CLE para editar ainda em 1978 “É a tua cara”, o primeiro livro do nosso artista prefaciado por este professor aqui encantado com a arte do aluno brilhante. Não posso deixar de reproduzir minha última frase:
– Mário Adolfo, chargista de sensibilidade aguda e admirável intuição, nos ensina a olhar o mundo que nos cerca. Pode figurar em qualquer publicação nacional tipo “O Pasquim”. Tenho o prazer de anunciar que fui o primeiro a descobrir isso. Profetizei: “Guardem esse nome: Mário Adolfo. Ele vai longe”.
Foi longe mesmo. Fazia parte de uma geração talentosa da área de comunicação e literatura com quem tive a sorte de conviver em sala de aula, entre eles Otoni Mesquita, Carlos Rubens, Natasha Fink, Torrinho, Wandler, Ivânia Vieira, Sérgio Bartholo, Verenilde Pereira, Bernadete Andrade e tantos outros que se destacaram no mundo das artes e do jornalismo.
Dois anos depois, em 1980, ele se formou. O convite de formatura, criação sua, era um livreto que trazia uma história em quadrinhos com enredo, personagens e diversos recursos gráficos. Na capa, a porta da universidade se abre dando um pontapé na bunda de um inconformado, anunciando autoritariamente: “Teje formado”. As páginas interiores trazem sua visão crítica sobre a universidade. Pronto. Os 24 alunos da turma estavam todos formatados.
Ainda como estudante, o chargista aceitou o convite do Porantim, um jornal mensal em defesa da causa indígena editado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário, do qual o redator chefe era eu. Os primeiros números mimeografados e depois os impressos em offset contaram com o trabalho voluntário de Mário Adolfo, cujas charges criticavam a política indigenista da ditadura militar, seu famigerado projeto de “Emancipação”, os conflitos em terras indígenas, a discriminação. Teve até um número internacional redigido em inglês.
A distribuição nacional incluía as aldeias indígenas, mas devido às críticas aos internatos, a FAB e os salesianos não deixavam o jornal entrar no Rio Negro. Mário Adolfo, duas colegas e eu transportamos, então, em nossa bagagem, cem exemplares de um dos números para São Gabriel da Cachoeira, que de lá subiram os rios Vaupés, Tiquié e Içana levados quase clandestinamente por mãos indígenas.
Várias charges ganharam a capa do jornal, como a que apresenta um confronto entre o brigadeiro Protásio e um líder Tukano (nº 17, abril 1980) e o número sobre a visita do Papa João Paulo II a Manaus (nº 21, agosto 1980). Seu autor já estava visceralmente comprometido com a luta indígena. Mais tarde conquistaria muitos prêmios, comendas e medalhas, entre eles o Esso de Jornalismo (1984 e 1997).
Amor de Bica
Sua produção no Porantim merece um capítulo à parte, assim como seus vários livros de charges, de quadrinhos, de causos, de crônicas, de reportagens, entre eles: “O dia da abertura”, “O que dá pra rir dá pra chorar”, “A.E.I. Ópera”, “Conversa pra Boi dormir”, “Amor de Bica onde bate fica” e finalmente “O Curumim, o Último Herói da Amazônia”, personagem de quadrinhos que foi tombado como patrimônio cultural e imaterial do Amazonas em 2018.
Mario Adolfo reconhece que o Porantim foi a semente que germinou o Curumim, nascido dentro do jornal A Crítica, como suplemento infantil lançado no dia 1º de maio de 1983, atendendo ao desafio de Umberto Calderaro. Outros personagens foram surgindo: Sarah Patel – a tartaruga militante e ativista, o Jacaré Thinga – que morre de medo de virar sapato ou carteira, Murupi – a namoradinha do Curumim, Lourival – o comunicador da floresta, Jara – o jaraqui e last but not least Mr.Okey – o gringo invasor biopirata. Todos eles protagonistas do livro que vai ser publicado brevemente com 300 tiras que alegrarão as nossas netas e filhas, mas seguramente também a nós mesmos.
Nesses tempos apocalípticos de pandemia, de truculência, de negacionismo, de terraplanismo, em que diariamente aumenta o número de amigos mortos, parentes, colegas e pessoas queridas, o Curumim – esse anjo da História – é uma ilha de vida e de esperança.
Quando convidado para fazer este prefácio, me deu vontade de provocar:
– Posso fazer só com charges?
Mas se a resposta fosse afirmativa, eu estaria perdido. Mário Adolfo há um só.
P.S. Muitas lembranças, entre outras a da primeira comunhão que fizemos juntos na igreja do D. Bosco, em Manaus. Nas festas natalinas, era ela vestida de Papai Noel, quem distribuía os presentes, festejada pelas crianças animadas por seu riso cristalino e sua alegria. Num verão no início dos anos 1970, quando fazia especialização em direito na Itália, veio me visitar em Paris acompanhada de uma amiga. Sempre recordamos nossa visita ao Louvre. Ficou hospedada no meu quartinho de exilado, na torre da igreja do Espírito Santo, onde mal cabiam três pessoas. A amiga dormia debaixo da pia. Para fazer o café da manhã no mini camping gaz, duas pessoas tinham que ir pro corredor. Lúcia Maria Bessa Respeita nos deu seu último adeus nesta quinta-feira (18) em Niterói na hora em que no céu se abria um imponente arco-íris. Nos últimos dois meses nos divertíamos com os programas diários da Emissora de Rádio Terapia inventada para amenizar uma doença compartilhada. Pranteamos a perda com Orlando (esposo), Renata, André e Flávia (filhos), Dodora, Elisa e Marta (irmãs), familiares, genros e netos.