Por Ribamar Bessa:Curt Nimuendaju morreu como viveu: entre os índios. Foi numa aldeia ticuna no Solimões, em 10 de dezembro de 1945. Ele tinha 62 anos. Nesta quinta-feira, aos 70 anos de sua morte, o Museu do Índio do Rio de Janeiro lançou o livro de sua autoria “Reconhecimento dos Rios Içana, Ayari e Uaupés” com texto e fotos de 1927, além de dados sobre as línguas faladas na bacia do Rio Negro, organizado pelo antropólogo Renato Athias, que na ocasião debateu com a linguista Marília Facó e este locutor que vos fala.
Na minha fala, sugeri que a vida de Nimuendaju daria um filme, cujo roteiro tentei esboçar de brincadeirinha. Cheguei até a propor o nome do ator para interpretá-lo: José Mayer, que tem o physique du rôle. Ele contracenará com Kentapí, índia Canela e com Ireti, Apinajé, namoradas de Nimuendaju com quem casou, que serão interpretadas não por atrizes profissionais, mas por leitoras selecionadas por esta coluna (cartas e fotos para a redação). A direção será de Cao Hamburger, que mostrou entender do riscado com “Xingu” e “O ano em que meus pais saíram de férias“.
O filme começa com esse alemão, nascido em Jena, ainda menino, brincando de índio nos bosques da Turíngia conforme indicado em sua biografia ou nadando no igarapé do Leine, na Baixa Saxônia, quando ainda era conhecido como Curt Unkel – seu nome de batismo. Seguem-se cenas da adolescência na escola. A Universidade de Jena, fundada em 1557, por onde passaram, entre outros, Goethe, Hegel e Karl Marx, fica de fora. É que Nimuendaju nunca cursou o ensino superior, depois de concluir o curso secundário foi trabalhar na fábrica de instrumentos ópticos Carls Zeiss.
Mapa de línguas
Foi lá, na biblioteca desta fábrica (só mesmo na Alemanha fábrica tem biblioteca) que o jovem operário solitário passou a ler, avidamente, crônicas, relatos de viajantes, de missionários e de naturalistas e se familiarizou com as culturas indígenas, as descrições etnográficas e a diversidade de línguas. Encantado, quando completou 20 anos, decidiu viajar ao Brasil para ver os índios de perto.
Economizou uns trocados, e com ajuda financeira de sua irmã Olga comprou passagem de navio para Santos onde desembarcou em 1903. O filme pode mostrar cenas de Curt ainda Unkel caminhando pela estrada até a primeira aldeia indígena, em São Paulo, sua chegada, sua amizade com os guarani e a cerimônia do Nhemongaraí, em 1905, quando trocou de nome ao ser batizado como Curt Nimuendaju, que numa tradução livre significa “aquele que constrói sua própria morada”. Construiu mesmo. O alemão se guaranizou e se abrasileirou. Com facilidade para aprender línguas, logo dominou, entre outras, o guarani, o português e o nheengatu.
O interesse por línguas indígenas levou Nimuendaju a elaborar o mapa etnohistórico, trabalho minucioso de cartografia linguística feito no final da vida, depois de percorrer o Brasil de ponta à ponta durante 40 anos. Registrou 1.400 grupos indígenas em mais de 500 rios, usando 41 cores e tons para indicar as famílias linguísticas. O mapa tem movimento: a localização dos índios é datada com setas apontando a direção dos deslocamentos. Foi considerado “o maior documento etnográfico brasileiro” por Aloísio Magalhães, então presidente da Fundação Nacional Pró-Memória, que o publicou em 1981, em parceria com o IBGE.
Nas suas andanças por aldeias, quase sempre trabalhando para o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), Nimuendaju organizou coleções de objetos de arte indígena que hoje fazem parte do acervo de museus nacionais, europeus e americanos, com os quais manteve permanente diálogo. Reuniu ainda peças arqueológicas, como aquelas da Cultura Tapajós que recolheu em 1922 depois de uma forte chuva responsável por escavar a principal rua de Santarém, sítio arqueológico que se revelou “uma mina inesgotável de cerâmica”.
Caminhante tapedjá como os guarani, zanzando sempre de um lado pro outro, seu ponto de referência por algum tempo foi a cidade de São Paulo, mas depois passou a residir – digamos assim – em Belém do Pará, lugar de pouso entre uma viagem e outra, onde mantinha seus livros e suas tralhas e onde o esperava dona Lila, doméstica e lavadeira, com quem casou. Foi mais um casamento em sua vida.
As mortes de Nimuendaju
Pode ser interessante o filme sobre Nimuendaju mostrar sua metodologia de trabalho, que implicava longa estadia nas aldeias vivenciando o cotidiano dos índios, a aprendizagem da língua e o estabelecimento de relações respeitosas. Talvez seja interessante reconstituir a visita que ele fez em 1938 ao Posto Paraguaçu, na Bahia, e o contato com uma das últimas falantes da língua camacã, Dona Jacyinta Grayira, que ouvia com dificuldades e não entendia suas perguntas.
Foi aí que Nimuendaju recorreu ao teatro de mamulengo. Com papelão, caixotes e garrafas vazias fabricou bonecos e ressuscitou parentes falecidos de dona Jacynta, movimentando-os sobre uma mesa. Dessa forma, reconstituiu, junto com ela, o inventário dos termos de parentesco na língua camacã e registrou algumas narrativas míticas, além de um vocabulário básico nessa língua.
Este “guru da etnologia brasileira”, andarilho por definição na avaliação de Mariza Corrêa, foi um “autodidata que construiu sua trajetória na etnologia brasileira, pesquisando, pesquisando, pesquisando. Talvez tenha sido o último daquela falange brilhante de etnógrafos viajantes mencionada por Herbert Baldus, que vieram ao Brasil para se embrenhar nas selva e conhecer os verdadeiros nativos do país”.
Finalmente – as leitoras que me perdoem – mas o José Mayer vai ter que morrer, não uma, mas muitas vezes. Será? No final, o filme mostrará as diversas mortes de um dos maiores etnólogos do séc.XX, que não tinha diploma universitário, mas deixou uma obra densa e rica. Aconteceu numa aldeia próxima a Santa Rita, no Solimões. Uma hemorragia fulminante que é contada em várias versões, segundo Roque Laraia.
Para os madeireiros e seringalistas, Nimuendaju teria sido envenenado pelos Ticuna, que estavam – numa das versões – enciumados com o envolvimento amoroso dele com as índias ou – na outra – mataram para roubar seus pertences. Laraia afirma que ambas reforçam preconceitos que pretendem mostrar os índios como não confiáveis, capazes de cometer crimes hediondos até contra seus aliados, por isso merecem ser tratados duramente. Uma delas, usou o lado mulherengo dele para obter um verniz de “veracidade”.
Os Ticuna contam outras versões. Em uma delas, a causa mortis foi um café envenenado por um “civilizado” da região, desgostoso com a atuação indigenista de Nimuendaju, que sempre defendeu os direitos dos índios e criticou os usurpadores de suas terras. Numa carta a Heloísa Alberto Torres, pouco antes de morrer, Nimuendaju dá nomes aos descontentes. Apesar disso, Laraia não descarta definitivamente a morte natural, já que exames médicos diagnosticaram um ano antes a saúde debilitada do nosso herói por malárias e quinino.
Para um personagem dessa dimensão “uma só morte seria pouca” – escreveu Laraia. Os ossos de Nimuendaju, recolhidos por Harald Schultz, durante muitos anos ficaram guardados no Setor de Etnologia do Museu Paulista, numa caixa de papelão ou numa igaçaba, seu enterramento só seria feito em 1981 pela antropóloga Tekla Hartmann, responsável pelo Setor.
Existe ainda a versão que nega todas as demais e que foi reafirmada no lançamento do seu livro no Museu do Índio nesta quinta-feira: Curt Nimuendaju continua vivo no meio de nós. Será sempre ressuscitado por seus leitores.
P.S. 1 – Uma pena: José Mayer foi despedido antes mesmo de ser contratado. O filme já é realidade e eu nem sabia. Ao final do debate no Museu do Índio um dos presentes me informou que está em fase de conclusão um longa metragem de animação sobre a vida de Curt Nimuendaju, vivido na tela pelo ator alemão Peter Ketnath (“Cinema, Aspirinas e Urubus” de Marcelo Gomes). Ver o link: http://filmenimuendaju.blogspot.com.br/p/o-filme.html.
P.S. 2 – Mais sobre Curt Nimuendaju pode ser encontrado em: 1) Egon Schaden: Notas sobre a vida e a obra de Curt Nimuendaju, Revista de Antropologia volumes 15 e 16 (1967-68); 2) Roque de Barros Laraia: A morte e as mortes de Nimuendaju (1988) – Série Antropologia n. 64 Brasilia; 3) Marta Rosa Amoroso (USP): Nimuendajú às voltas com a história. Revista de Antropologia, USP. 2001; 4) João Pacheco de Oliveira: Nosso Governo – Os Tikuna e o Regime Tutelar”, Programa de P6s-Graduação do Museu Nacional, 1986; 5) Thekla Hartmann (org) Cartas do Sertão – De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira Assírio & Alvim, Lisboa, 2000; 6) Mariza Corrêa. Paixão Etnológica. Cartas do guru da etnologia brasileira. Jornal de Resenhas, FSP. São Paulo, 12 de maio de 2001; 7) Dossiê Nimuendaju. Tellus, revista do NEPPI da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB – nº 24, ano 13. 2012