Por Ribamar Bessa:
É. É isso mesmo. É assim que se diz em língua guarani “Fora Cunha”: Ejeí upegui Cunha. E já que o país é multilíngue, o grito em português pode ter sido traduzido não só ao guarani, mas a dezenas de outras línguas faladas por índios, quase todos bilíngues, que nesta quarta-feira (16) ocuparam o teto do Congresso Nacional. Eles foram lá para denunciar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215), cujo Pai – Vitória na Guerra! – é o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha (PMDB vixe vixe), o mafioso da facção ruralista enlameado por falcatruas até o último fio de cabelo, o único capaz de unir o País em torno de algo.
Eram cerca de 1.500 índios de 139 etnias, participantes da I Conferência Nacional de Política Indigenista, realizada no Centro Internacional de Convenções de Brasília de 14 ao 17 de dezembro. Na terça (15), a presidente Dilma foi lá dizer que era contra a PEC 215, mas prudentemente não levou sua ministra da Agricultura Kátia Abreu, que namora mesmo é as terras indígenas. O Diário do Amazonas publica agora aquilo que os jornalões de circulação nacional silenciaram sobre a Conferência Nacional, o “Fora Cunha” e o “E aí, Dilma?” Não deram sequer uma notinha. Ai vai.
Cunha ainda taí?
Por volta das 9 horas os índios chegaram ao Congresso Nacional. Queriam interpelar os parlamentares sobre a PEC 215 do agronegócio que muda a Constituição e impede a demarcação de terras indígenas. Não puderam entrar no prédio. Retiraram, então, a proteção lateral, acessaram a rampa e subiram na cobertura do Congresso, dançando e cantando com maracás, bordunas, lanças e faixas com “Fora Cunha”, “Não à PEC 215”, “Democracia é demarcar as terras indígenas”. Mas Cunha não tava nem aí.
No início da manifestação, havia apenas um vigilante. Depois, chegaram efetivos da Polícia Legislativa que ficaram observando, barraram a passagem de quem não era índio e no final negociaram com os líderes do movimento a descida para o gramado, o que ocorreu às 11h30, quando os índios voltaram à Conferência Nacional, onde durante quatro dias discutiram as políticas do Estado brasileiro relacionadas à demarcação de terras, saúde, educação, sustentabilidade, línguas e culturas indígenas, patrimônio e memória.
A abertura oficial da Conferência, na segunda-feira, foi feita pelo ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, que destacou “a primeira vez que acontece um debate franco entre povos indígenas e o Governo” e se pronunciou contra a PEC 215 e a favor das demarcações, em mesa coordenada pelo presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, na qual discursaram a Procuradora da República, Débora Duprat e o advogado Terena, Luís Eloy. Houve consenso sobre o caráter inconstitucional da PEC 215, que se aprovada no Congresso será derrubada no Supremo Tribunal Federal, apesar de Gilmar Mendes (vixe vixe), Dias Toffoli (vixe vixe) e Edson Facchin (vixe vixe).
Durante quatro dias, representantes indígenas de todo o país e observadores discutiram quase 5 mil propostas que haviam sido formuladas por mais de 30 mil índios em suas comunidades nas etapas locais e regionais realizadas nos últimos meses. O Caderno de Propostas foi debatido pelos participantes em rodas de conversa em torno de eixos temáticos. O objetivo era avaliar a ação do governo relacionada aos direitos indígenas e propor diretrizes para a política nacional indigenista.
E aí, Dilma?
“Política Indigenista Hoje” foi justamente o tema da mesa magna no primeiro dia (14) coordenada por Luis Titiah Pataxó Hãhãhãe, da qual participaram o presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Antônio Carlos Souza Lima, este locutor que vos fala e Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Ela se referiu a 182 medidas anti-indígenas defendidas pelos ruralistas que estão tramitando no Congresso e cobrou do Governo ações mais concretas:
– Nós sempre acreditamos na palavra dada. É tradição nossa acreditar na palavra dada. Escutamos muitas autoridades do Governo se pronunciarem contra a PEC 215. Mas nós não sentimos, na prática, a efetividade dessa fala. Como acreditar no Governo que se pronuncia contra a PEC 215, mas ao mesmo tempo decreta uma lei antiterrorismo, que criminaliza e prende as lideranças que defendem seu território? A relação do Estado com os povos indígenas precisa ser mudada. Estamos aqui pra pactuar um novo rumo de respeito, de aliança e de cumprimento de promessas.
Muitas promessas foram feitas no segundo dia (15), no final da tarde, pela presidente Dilma que foi até o Centro de Convenções conversar com os índios. Ela prometeu criar o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) – uma demanda antiga do movimento indígena, além de demarcar terras, criar a Rede Brasileira de Educação Superior Intercultural Indígena e ampliar os quadros da Funai com a realização de concursos. Foi recebida com aplausos e gritos de “Não vai ter golpe” e “Fora Cunha”. Se estivesse acompanhada por Kátia Abreu, teria sido vaiada e aí sim a notícia seria dada nas primeiras páginas dos jornais.
Na saudação à presidente, o líder indígena Neguinho Truká reforçou o discurso de Sônia Guajajara e insistiu na necessidade de estabelecer um pacto com Dilma: “Não aceitamos o impeachment que é um golpe no estado democrático, mas queremos que a senhora entenda nosso clamor e nossas necessidades”. Ele cobrou a demarcação de terras e a consulta prévia aos povos indígenas sobre grandes empreendimentos que afetam seus territórios.
Desconfiados e com um pé atrás, alguns líderes duvidaram. “Não é possível confiar 100% no discurso de Dilma”, declarou Maximiliano Menezes, presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). O movimento indígena quer ver para crer.
Saca fora!
A Conferencia encerrou na quinta e já na sexta (17) o Diário Oficial publicou decretos de Dilma criando o CNPI e homologando quatro terras indígenas, todas no Estado do Amazonas, somando 246 mil hectares. Foi um avanço, mas o Conselho criado é apenas consultivo e não deliberativo como os índios queriam. Quanto à demarcação, os índios esperam que sejam desengavetados outros processos das Terras Indígenas Tapeba, Munduruku e, sobretudo, Guarani-Kaiowá, foco de conflitos responsáveis por assassinatos de líderes indígenas cometidos por milícias particulares. Há 45 terras do povo Guarani-Kaiowá aguardando andamento na Funai.
Enquanto isso, sugiro que as organizações indígenas – COIAB, FOIRN, APIB – confeccionem um grande mural com “Fora Cunha” escrito em todas as 200 línguas indígenas faladas no Brasil. Quem sabe poderão ser assim ouvidos pelo japonês da Polícia Federal. O termo em Nheengatu muito usado no português regional da Amazônia é “saca” ou “musaca”, segundo o dicionário de Stradelli. Saca fora, Cunha!
P.S. 1 – “Política de línguas: o primo pobre da política indigenista” – esse foi o título da nossa fala. A questão de sobrevivência é tão grande que as línguas são relegadas muitas vezes a um segundo plano pelo próprio movimento. Agradeço a Joel Kuaray, meu aluno de História e meu professor de guarani, pelos ensinamentos. As fotos são de Mário Villela, Carolina Cruz, Marianna Holanda e Wilson Dias.
P.S. 2 – Durante a I Conferência Nacional, como parte da programação, houve a feira de artesanato indígena, com mais de 40 artesãos de diferentes etnias que expuseram colares, cestarias, bordunas, remos, brincos, cachimbos, arcos, flechas, redes, esteiras, gamelas, pilões, farinheiras, maracás e outros objetos de arte que formam parte do patrimônio indígena.