Às vésperas de um pleito que é, sem dúvida, o mais importante de quantos tivemos desde o fim da ditadura instaurada em 1º de abril de 1964 (regime de terror que nos atanazaria por 21 longos e doloridos anos), o país volta a ser inquietado pelo temor de um golpe de Estado. Essa ameaça, aliás, não é nova, pois é a marca do atual governo, desde seus primeiros dias perseguindo a construção de um regime autoritário. Por mais de uma vez, como no 7 de setembro do ano passado, o capitão esteve próximo de romper com a ordem institucional. Sempre com apoio de seus seguidores, permanentemente mobilizados, como nos regimes fascistas nos quais busca inspiração. No quadro presente, frustradas as maquinações anteriores, o ponto nevrálgico é o processo eleitoral. A extrema-direita teme perder as eleições para Luiz Inácio Lula da Silva, que, líder nas pesquisas de intenção de voto em 2018, foi impedido de participar do processo eleitoral pela aliança do judiciário e do oligopólio da comunicação com o bolsonarismo emergente. Desta feita, candidato e eventualmente eleito, o “peixe barbudo”, na linguagem de Leonel Brizola, pode ter sua posse contestada mediante o questionamento da lisura das eleições.
A história não se repete, mas no Brasil ela é recorrente. Em 1950 as eleições foram ameaçadas porque prometiam a vitória de Getúlio Vargas, o espantalho de então. A propósito, vale a pena lembrar o famoso artigo de Carlos Lacerda, expoente civil do golpismo nos anos 50/60 do século passado: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar” (Tribuna da Imprensa, 1º/06/1950). Como sabemos, Vargas foi eleito e empossado, para ser deposto em 1954.
Relembrando tempos que supúnhamos definitivamente escorraçados de nossa história, a hipótese de ruptura da ordem constitucional, conquistada após tantos anos de lutas contra as fileiras, relembre-se sempre, chega aos nossos dias sob a forma de denúncia dos editoriais dos ainda grandes jornais. O ombudsman da Folha de S. Paulo, na edição do último dia 8, escancara a gravidade da crise política em gestação já no título de sua matéria: “Vai ter golpe. Passe a informação”, para na sequência arrematar: “Folha e a imprensa devem trocar a presunção pela certeza do fato”. Com algumas alterações de estilo, assim têm falado O Globo e o Estadão, os jornalões que com o matutino dos Frias ditam a linha editorial de nossa imprensa. Esse discurso nos deve pôr a todos de sobressalto, pois de golpes de Estado, em suas diferenciadas modalidades, muito bem entende a mídia brasileira, que de todos participou, inclusive do golpe de 2016, que, ao depor Dilma Rousseff, asfaltou o caminho que nos trouxe à tragédia de nossos dias. Sem o concurso ativo da imprensa teriam sido inviáveis o impeachment e as arbitrariedades da lava- jato.
Mas que golpe é este que teria encontro marcado com o processo eleitoral de 2022, e contra o qual, dizem os mesmos jornais, a CIA já teria demonstrado desapreço?
A teoria política guarda um sem-número de modalidades de golpes. Uma só, e praticamente em desuso, é aquela que vem montada nos tanques e nas metralhadoras, como o brasileiríssimo golpe de 1964, costurado pela casa-grande e, como sempre, levado a cabo pelas forças armadas (apoiadas pelo imperialismo), desta feita fazendo desfilar pelas ruas do país os armamentos herdados da segunda guerra mundial. Golpe de Estado clássico foi, também, a proclamação da república; foi a chamada “revolução” de 1930 (movimento liderado por três governadores e meia dúzia de oficiais); foi a implantação do Estado Novo (que dispensou o desfile das tropas, tão pacificamente se instalou a ditadura); e golpe de Estado foi a derrubada de Vargas em 1945, levada a cabo pelos generais que com ele haviam instaurado o Estado novo e com ele governado. Ainda golpe de Estado foi a conspiração de 1954, com seu desfecho dramático. Mas golpe foi também a implantação do parlamentarismo em 1961, e pelo menos três outros golpes dentro do golpe viveríamos nos 21 anos do mandarinato militar: a decretação do AI-2 (suspensão das eleições, fechamento dos partidos e prorrogação do mandato do ditador), do AI-5 (implantação da ditadura descarada) e, na sucessão de Costa e Silva, o golpe que, rasgando a constituição legada pelo próprio regime, impediu a posse do vice Pedro Aleixo e entregou a presidência a uma junta formada pelos três ministros militares de plantão.
No Brasil há, também, a prática do “golpe preventivo”; assim, os militares tentaram a tomada do poder para impedir a posse de Juscelino Kubistchek eleito em 1955; e em 1961, para reduzir os poderes de João Goulart, engendraram a fórmula parlamentarista, sempre trazida ao debate quando o sistema teme a eleição de algum quadro não sancionado pela casa-grande. A dupla Michel-Temer e Arthur Lira, à falta do que melhor fazer, tenta impingir um mostrengo político que batizam de “presidencialismo mitigado”, um parlamentarismo de fato que visa pura e simplesmente a impedir, preventivamente, a governança plena de um quadro de esquerda eventualmente eleito.
Um destacado articulista, lamentando o curto espaço de tempo que nos separa das eleições, impeditivo de uma reforma constitucional, propõe que o segundo turno seja travado pelos três candidatos mais votados no primeiro turno, o que – talvez ele não se tenha dado conta – desnaturaria o princípio da maioria absoluta, fundamento das eleições em dois turnos. Eis outra modalidade de golpe. Outras fórmulas mágicas serão arquitetadas (sempre o são) e se nenhuma for fixada, ou se a eleição terminar premiando um líder popular, aí então entrarão em cena as forças armadas. Volta-se à sentença de Carlos Lacerda, que, embora referindo-se a Getúlio Vargas, foi muito bem aplicada contra João Goulart e Dilma Rousseff, que, mesmo antes do impeachment, não pôde governar em 2015. Lula teve sua candidatura garfada em 2018. Em 2022 sua eleição torna-se uma ameaça palpável. Nada obstante seus dois governos, moderadamente reformistas, marcados pela conciliação de classes, a casa-grande não reconhece razões para baixar a guarda. Desta feita, ao contrário do que ocorria no curso da história dos últimos tempos, os engalanados não precisarão ser chamados à cena para evitar a emergência de interesses populares, pois já dominam o cenário político, e não entendem que dele devam se afastar, tão benfazeja é a boa vida que lhes proporciona.
A velha característica dos golpes descritos pelos clássicos da ciência política, de se efetivarem como de surpresa e se implantarem numa rápida tomada de poder, de há muito foi superada pela necessidade moderna de preparação, às vezes longa, da opinião pública. Pressupõe uma extensa batalha ideológica. De novo colhemos a lição no golpe de 1964; a conspiração militar teve início no momento imediato da posse de João Goulart (Ciclo revolucionário brasileiro. Nova Fronteira. 1980. Memórias de Odylio Denys) e a preparação da opinião pública para o assalto ao poder foi costurada durante todo o mandato do presidente. Este é o papel crucial ao encargo da grande imprensa, manipulando corações e mentes, construindo as bases da aceitação/legitimação da afronta à democracia.
O desempenho faccioso da imprensa foi determinante na costura do golpe de 2016. Com o seu desvelamento veio à cena um novo agente de poder, qual seja, a coalizão poder judiciário-ministério público-imprensa. Seu produto foi a lava jato-república de Curitiba, que, embriagada pelo sucesso, cometeu a ingenuidade de acreditar na sua própria autonomia. As consequências jurídicas, econômicas e políticas desse conluio de pervertidos ainda estão sendo inventariadas. Ao fim e ao cabo, a presidente Dilma Rousseff foi destituída da presidência, centenas de empresas foram levadas à falência, os trabalhadores levados ao desemprego, uma penca de políticos presos. O ex-presidente Lula foi impedido de disputar a presidência da república (para que o escolhido pelos militares pudesse ser eleito). Condenado à prisão, por um juiz criminosamente parcial, portanto corrupto, teve de observar 580 dias de cadeia. De todos os crimes de Sergio Moro (muito bem definido pelo deputado Glauber Braga como “juiz ladrão”) e seus associados foram coautores outros juízes, procuradores e desembargadores, foi o Poder Judiciário, como coletivo, e à frente de todas as instâncias o STF, que levou quase dois anos para ler a Constituição, devolver Lula à liberdade e restituir-lhe os direitos políticos.
Os togados escreveram uma das mais ignominiosas páginas da história da justiça brasileira. Os fardados não mais estão sós.
Como visto, a história recente, e mesmo a recentíssima, nos ensinam a não duvidar da disposição e inventividade dos donos do poder, no Brasil, para virar o jogo e praticar as agressões que houverem por bem praticar contra a ordem democrática, burlando normas vigentes e sacando novas da algibeira – tudo com vistas a manter as coisas como estão, afastando o risco de que a justiça social se torne, afinal, uma realidade entre nós.
Convém botarmos as barbas de molho.