Do CONJUR:
Em sua última passagem pelo governo, o advogado Beto Vasconcelos ficou responsável pela regulamentação das então novas leis de combate à corrupção. Hoje, elas podem ser apontadas como diretas responsáveis pelas intermináveis operações de investigação de crimes financeiro, como “lava jato”, zelotes, greenfield, além das inúmeras delações premiadas que suportam esses processos.
Para Vasconcelos, tudo isso é resultado de um longo processo em andamento. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, ele explica que o momento em que se encontra o Brasil é resultado de quatro amplos movimentos: ampliação da transparência; fortalecimento das instituições; aprimoramento das leis; e inflexão jurisprudencial.
Mais importante que o combate a corrupção, ele afirma que esses movimentos desnudaram “práticas profundamente equivocadas” nas relações do setor privado com o setor público. O advogado reconhece que há exageros, mas acredita que seja em decorrência do movimento pendular da sociedade, hoje “fortemente direcionado a um controle e repressão mais efetivos”.
“Em algum momento no curto ou médio prazo, esse pêndulo vai se estabilizar numa posição de equilíbrio, em que se permita o avanço da gestão com o devido controle”, afirma. “Mas, de fato, enquanto esse movimento pendular estiver mais incisivo em repressão e controle, haverá certa paralisia.”
Beto Vasconcelos é advogado e professor da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), onde ele ensina sobre processo legislativo e o funcionamento dos Poderes da República. Foi secretário nacional de Justiça do Ministério da Justiça, subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil e também secretário-geral da pasta, durante o governo Dilma Rousseff.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor tem defendido a tese de que o momento que vivemos hoje vem sendo construído há alguns anos pelo amadurecimento institucional. Como isso aconteceu?
Beto Vasconcelos — Mais importante que vermos a foto do que acontece hoje é vermos o filme. E acho que isso começou no início dos anos 1990, depois da abertura do mundo com o fim da União Soviética e o fim da bipolarização. A partir dali, o mundo se abriu também para a quebra de barreiras mais profundas, de fluxo de capital, bens e serviços. Tanto legais quanto ilegais, com a intensificação do crime organizado, muitas vezes ligado ao tráfico de drogas e até ao terrorismo.
ConJur — Por que aponta esse período como início do processo que vivemos hoje?
Beto Vasconcelos — É quando surge, nos fóruns internacionais, um intenso debate sobre mecanismos de enfrentamento desses crimes. Dali começa a formulação dos acordos e convenções internacionais que culminam com a convenção da OEA para enfrentamento da corrupção em 1996, da OCDE em 1997, a convenção da ONU contra o crime organizado, que é a Convenção de Palermo, em 2000, a convenção contra a corrupção de 2003, que é a Convenção de Mérida. Surge dali um movimento de formatação de regras que deveriam ser seguidas e implementadas pelos membros daqueles grupos, e é desse contexto que surgem temas hoje em evidência no Brasil.
ConJur — No Brasil, o processo foi o mesmo?
Beto Vasconcelos — Destaco quatro tipos de mudanças, ou quatro tipos de movimentos:
– O primeiro movimento é o de transparência. Costumo usar dois exemplos, um de 2000 e outro de dez anos depois. O primeiro é a Lei de Responsabilidade Fiscal, efetivamente um instrumento de transparências da contas públicas, e a Lei de Acesso à Informação, de 2011, que foi uma mudança de paradigma. Um Estado acostumado à regra geral do sigilo, franqueando acesso em casos excepcionais, inverteu a lógica e passou a ter regras de acesso a informação.
– Um segundo eixo é o fortalecimento institucional. Houve a criação, em 1998, do Coaf, junto com a Lei de Lavagem de Dinheiro. Depois o aprimoramento da Receita, com a fusão da Receita Previdenciária com a Receita Tributária. Em 2011, mudanças importantes no Cade, na estrutura e forma de julgamentos, nos mecanismos de investigação, criando o SuperCade. E ainda mudanças na CGU, com o aprimoramento e aperfeiçoamento dela, com a transformação em ministério e em cabeça do sistema de combate a corrupção. E houve ainda a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), que reúne quase 70 instituições, além da criação da Secretaria de Cooperação Internacional do MPF.
– Estamos passando também por um processo de expansão legislativa, que são os processos de implementação daqueles acordos internacionais dos quais somos signatários. Por isso, a Lei de Lavagem, em 2012, o SuperCade, em 2011, a Lei Anticorrupção, de 2013, a Lei de Combate a Organizações Criminosas, do mesmo ano, mais recentemente a Lei das Estatais. Tudo isso tem trazido novos elementos que vêm sendo postos em prática pelo Legislativo e pelo Judiciário, e pelos órgãos públicos de controle.
– Aliado a isso há o quarto movimento, que é jurisprudencial. São mudanças no rumo jurisprudencial, ou da tendência jurisprudencial. Teorias importadas e adaptadas aqui sem juízo ou valoração específica, como a Teoria do Domínio do Fato ou a Teoria da Cegueira Deliberada, que têm mudado a percepção do Judiciário sobre responsabilização, inclusive em matéria penal, tendendo a sair de um movimento de responsabilização exclusivamente caracterizada por comissão para ir também para a omissão. Ou seja, além de fazer, com dolo ou intenção, deliberadamente deixar de fazer algo para impedir que aquele ilícito aconteça.
ConJur — São medidas de combate, e não de controle, não?
Beto Vasconcelos — A reformulação dessas instituições, com aumento de recursos humanos e financeiros e aprimoramento tecnológico, levou a três consequências: maior prevenção, maior detecção e maior repressão. Identifica-se mais equívocos de gestão, que podem ser corrigidos enquanto a máquina está funcionando. Isso aumenta significativamente a capacidade do Poder Público de identificar problemas, de gestão ou de cometimento de ilícitos mesmo, passando a depender menos de denúncias ou de mecanismos invasivos, como interceptações telefônicas. Na verdade, o Estado vem se capacitando mais em identificar desvios e construir processos de investigação a partir da análise de dados, daí a maior eficiência.
ConJur — Numa entrevista à Folha de S.Paulo, o presidente da Queiroz Galvão disse que, com esse excesso de controle, de “tudo que termina com U” (como TCU, AGU, CGU), inviabiliza assinar contratos com o Estado.
Beto Vasconcelos — É importante entender que estamos em um processo de implementação de um novo modelo normativo, institucional e jurisprudencial, que tende a ter suas externalidades negativas. Mas não podemos deixar de levar em consideração que esse novo sistema tem evidenciado também práticas profundamente equivocadas na relação público-privado.
ConJur — Mas isso cobra um preço.
Beto Vasconcelos — O pêndulo nesse momento está fortemente direcionado a um controle e repressão mais efetivos. Em algum momento no curto ou médio prazo, esse pêndulo vai se estabilizar numa posição de equilíbrio, em que se permita o avanço da gestão com o devido controle. Mas, de fato, enquanto esse movimento pendular estiver mais incisivo em repressão e controle, haverá certa paralisia.
ConJur — Um dos movimentos apontados para a consolidação desse novo modelo foi o jurisprudencial. Pela sua análise, deixou-se de considerar apenas atos comissivos, para se punir pela omissão também, já que estamos nesse momento de combate e controle. Isso não é perigoso? Toda vez que forem confrontados interesses individuais e coletivos, o indivíduo não será derrotado?
Beto Vasconcelos — Essa tendência só deveria ser implementada com bastante cautela, a fim de evitar injustiças e evitar que haja uma criminalização generalizada de qualquer conduta. Há casos de omissão consciente que poderia evitar o cometimento de um crime, em que um risco é assumido. Isso pode e deve ser responsabilizado. Mas esses casos devem ser encapsulados em hipóteses muito claras e evidentes de atitude deliberada. Concordo que temos de ter cuidado, até para evitar condenações morais de condutas que não tenham sido criminosas.
ConJur — O que tem sido apontado hoje é justamente a contaminação moral dos julgamentos, que tem originado teses perigosas. Por exemplo, a condenação do deputado Paulo Maluf (PP-SP), em que o Supremo disse que a prescrição para crime de lavagem só começa a contar depois que o dinheiro é descoberto.
Beto Vasconcelos — A importância de ter claros esses limites e essas balizas é ter consciência de que, como diria o ministro Marco Aurélio, “o chicote muda de mão”. E aí às vezes o que parece ser fazer justiça, se reverte num processo de injustiça ou até mesmo de perseguição. Se uma palavra pudesse definir o que precisamos neste momento, do ponto de vista jurisprudencial, é equilíbrio. Consciência de que precisamos garantir a institucionalidade, visto que estamos num momento de ebulição política, econômica e social e cabe a cada um de nós, agentes privados e públicos, buscar equilíbrio deste momento.
ConJur — Ao mesmo tempo, temos visto um Estado bastante pragmatista, pelo menos a parte de investigação e repressão. Como aquela fala do juiz Sergio Moro, de que é melhor punir alguém do que ninguém. Ou a defesa que o procurador-geral da República fez da delação da JBS, de que se não houvesse o perdão aos executivos da empresa, os crimes não teriam sido descobertos. Tudo se encaminha para isso, então: ou o Estado abre mão de punir alguém ou ninguém será punido?
Beto Vasconcelos — Uma coisa não exclui a outra. Temos um Estado com importantes mecanismos de investigação e de negociação. Todos eles levam à apuração de crimes e são instrumentos legítimos, mas sua aplicação vai sempre depender do caso e também da consolidação da jurisprudência. Eles vão passar pelo balizamento de como devem ser usados, quais são seus limites e em que situações podem ser aplicados. Mas o que precisamos agora é discutir outra agenda de combate à corrupção, que está muito focada em mudanças no processo penal, no Código Penal, ou em tecnologia. Está na hora de discutirmos uma agenda dentro de educação.
ConJur — Como assim?
Beto Vasconcelos — Concretamente, temos mecanismos de incutir e incluir o tema de combate à corrupção na nossa base curricular nacional. Mesmo que seja focada em algumas matérias, é importante incluir temas como ética, comportamento ético, tributação, arrecadação, formulação de política pública, controle social, participação social. São mecanismos que têm como ser incluídos no currículo, mesmo que seja em disciplinas clássicas, como Português e Matemática. É preciso já criar consciência do que é representação política, participação social, o que é coisa pública e como deve ser o uso da coisa pública. Outro foco deve ser o uso intenso de tecnologia como instrumento de transparência, a exemplo de políticas de dados abertos, e de participação social, a exemplo de aplicativos públicos de interação e colaboração para a sociedade. E também para controle e investigação, a exemplo de unidades de inteligência e mineração de grande volume de dados ou big data.
ConJur — De todo modo, uma pergunta que se impõe é: por que no Brasil? Outros países passaram pelo mesmo amadurecimento institucional, mudança de leis, combate a crimes financeiros etc. Mas nenhum deles viveu esse cataclismo que aconteceu aqui, viveu?
Beto Vasconcelos — A gente tende a olhar o que acontece no país como se fosse único, mas, de fato, no Brasil isso parece mais intenso. Acredito que isso se deva a um choque entre dois movimentos dos últimos anos: esse do início do século XXI, de transparência, fortalecimento institucional, mudanças nas leis e na jurisprudência, e um movimento de consolidação e perenização de um sistema político falido, altamente vinculado ao financiamento privado, um sistema de representação já ultrapassado, que carece de profundas transformações. Não vou ser ingênuo e ignorar outros fatores nesse contexto, como uma intensificação da polarização política no país, a participação da sociedade e uma intensa abordagem por parte dos veículos de comunicação sobre todos esses fatos.
ConJur — Isso leva a outra questão, que talvez seja cruel. Essa convergência ter acontecido justamente enquanto um partido de centro-esquerda estava no poder não é bem uma coincidência. Obviamente o PT não contribuiu muito para mudanças no sistema e talvez até tenha agido da mesma forma que os demais partidos. Não é?
Beto Vasconcelos — A pergunta é difícil porque a análise é difícil. Por um lado temos essas mudanças importantes nos mecanismos de controle e combate ao longo dos anos 2000. Claro que houve mudanças importantes que a própria conjuntura provocou, mas grande parte delas aconteceu por incentivo do governo federal. Mas também não houve no sistema político brasileiro mudanças que pudessem evitar que esse choque acontecesse, ou de evitar a confirmação da tendência. Mas deixo para outros a análise sobre se isso aconteceria ou não, ou da mesma forma, fosse outra a orientação política do governo.
Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico.