São diversas, por óbvio, as óticas mediante as quais é possível interpretar a História, passo primeiro e indispensável para a correta intervenção no processo social. A História pode ser vista como processo, derivado da intervenção humana, como também pode ser vista, e o é frequentemente, como um fato autônomo, objetivo, pronto, acabado, parado. A primeira hipótese lembra uma sucessão de fatos que se encaixam segundo uma determinada lógica que se expressa mediante o movimento, ou, mais precisamente, uma progressão dialética. A segunda hipótese lê a História como quem contempla um fotograma, uma pintura, um quadro de arte pendurado na parede. Essa visão é irmã gêmea do dogma. Nela, a verdade é atemporal, a realidade está congelada, as palavras de ordem e os pleitos políticos estão imunes à intervenção da vida real.
Ilustração dessa visão é o enredo do romance A ponte do Rio Kwai, do francês Pierre Boulle, que se fez mundialmente conhecido pelo filme (de mesmo nome) que teve Alec Guinness num dos melhores momentos de sua longa carreira cinematográfica.
A história é simples, é possível resumi-la.
Prisioneiro dos japoneses, na II Guerra Mundial, o Cel. Nicholson (Guinness) é intimado a construir uma ponte, fundamental para a estratégia nipônica. Nosso herói não apenas aceita o encargo como o executa, comandando sua tropa de prisioneiros ingleses com rigor técnico, esmero e dedicação, até paixão, porque é assim que sua formação ética dirige seu trabalho e sua vida. Não lhe confrange, porém, saber que aquela ponte era fundamental para o esforço de guerra japonês. Fala mais alto seu compromisso com a engenharia. E quando os soldados americanos e ingleses chegam para destruir o engenho, o pobre Nicholson, desesperado, tudo tenta para salvá-lo. Porque o fundamental, para ele, era sua honra depositada na obra, e exatamente por isso ele a defendia com unhas e dentes, sem cogitar das consequências de seu uso pelos japoneses.
Essas imagens me ocorrem quando setores da esquerda brasileira, mais próximos de Hegel do que de Marx, estão a defender a convocação de uma Constituinte, para já, sem cogitar da correlação de forças que determinará sua composição e seu conteúdo.
Nada mais legítimo e nada mais necessário do que uma Constituinte para “passar o País a limpo”, como reclamava Darcy Ribeiro. Mas, antes, precisamos desmantelar o golpe e reconquistar a sociedade.
A Constituinte de 1946 instalou-se após a queda de Vargas e a de 1988, na sequência da derrubada da ditadura militar. Ambas foram precedidas de grandes mobilizações populares e, principalmente, avanço político, mas mesmo assim estivemos longe de conquistar a hegemonia, embora tenha sido possível muitas conquistas na ordem democrática e social com o texto de 1988.
O atestado de sua relevância é o denodo com o qual os presidentes eleitos sob o novo regime constitucional se empenharam na sua descaraterização. Nesse sentido foram campeões José Sarney e FHC, aquele que prometeu “enterrar a era Vargas”, depois de pedir que esquecêssemos o que havia escrito em seu tempo de sociólogo.
Como é sabido, não tivemos forças para salvar os principais avanços – e assim a Constituição ‘cidadã’ sofreu 95 emendas que atingiram, principalmente, os direitos trabalhistas, a defesa da economia nacional e nossa soberania. Mesmo assim nos trouxe até aqui. Para desestabilizá-la fez-se necessário um golpe de Estado reacionário que reuniu ao capital rentista o atraso político do agronegócio e as mais reacionárias seitas religiosas, como os diversos setores do neopentecostalismo.
São símbolos dessa desmontagem – que nos desafia – a “reforma trabalhista” cujo único objetivo é retirar direitos que remontam há mais de 60 anos, fragilizando ainda mais o trabalho em face do capital, e a reforma da Previdência, que pretende punir aqueles que mais dela necessitam, os pobres. Cogita-se, até, de acabar com a Justiça do Trabalho, acusada de protetora da classe operária.
Mas nada é tão significativo dos crimes em andamento que o projeto de certo líder tucano que simplesmente pretende revogar a Lei Áurea! Sua excelência propõe que a jornada de trabalhador rural passe para 12 horas e em vez de salário receba comida e choupana para morar. A alta burguesia rural, protegida pelo Estado sob seu controle, beneficiária de empréstimos que não são pagos, consumidora dos investimentos da Embrapa, descomprometida com objetivos nacionais, voltada para o mercado exterior, não faz concessão na luta de classe, num didatismo que torna incompreensível aqueles que ainda apostam na conciliação.
O outro lado dessa luta de classe, que se opera contra os trabalhadores e contra o país, é o avanço de uma visão reacionária, protofascista, de Estado e sociedade, disseminada diariamente, insistentemente, sistematicamente pela mídia monopolizada ideologicamente. Uma imprensa que desde muito renunciou ao jornalismo para transformar-se em trincheira do pensamento e da ação de direita.
Esse proselitismo tem dado frutos, como lembra o esforço midiático visando à desestabilização da presidente Dilma, a campanha pelo impeachment, a implantação do golpe. E, presentemente, sua sustentação.
Um e seus frutos – e nesse afã a razia fascistoide conta com a colaboração de setores desgovernados do Poder Judiciário e do Ministério Público –, é a desmoralização da política, dos políticos e dos partidos. Para quê e por quê? Ora, não há possibilidade de vida democrática sem partidos e sem políticos. A desmoralização da política e dos políticos foi o aríete da direita brasileira, que, com a omissão comprometedora dos liberais e a ação da imprensa, criou as condições subjetivas necessárias ao golpe de 1964. Essa mesma tática é renovada presentemente, com os mesmos objetivos.
Sem descartar as perspectivas futuras de uma Constituinte, a tarefa do curto prazo é a defesa da ordem constitucional democrática, ponto de partida para a retomada da hegemonia, e a salvação, sem casuísmos, das eleições de 2018. Aos pobres e deserdados a democracia é fundamental, tanto quanto o governo de exceção é o regime de preferência das classes dominantes.
Lamentavelmente, não estão presentes as condições políticas que asseguraram a convocação das constituintes de 1946 e 1988, e muito menos os textos democráticos que legaram. Esta é a questão central, pois a política, em qualquer tempo e onde quer que se experimente, é produto da correlação de forças. E esta, hoje, não nos é favorável. Esta conclusão mais do que óbvia, não descarta o projeto maior – uma Constituinte –, apenas nos adverte da necessidade de conhecer previamente sua oportunidade, pois seu projeto só se justifica, para nós, como instrumento de avanço dos interesses da democracia e das grandes massas.
FHC e Ulysses Guimarães durante a Constituinte de 1988 (Foto: Arquivo / Agência Brasil)
Esta é a questão fulcral: não se trata, para nós, da defesa pura e simples de uma Constituinte, mas de uma determinada Constituinte. Tanto assim que a direita também a reivindica, pelas páginas autorizadas do O Estado de S. Paulo, e pela pena de seus intelectuais orgânicos, de que é exemplo o ‘Manifesto’ assinado por Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias.
A Constituinte das elites – condicionada pelo monopólio político-ideológico, reacionário e golpista, dos meios de comunicação de massa associados ao capital internacional – é a promessa, hoje, de uma carta autoritária, reacionária, deslavadamente entreguista, antipovo e antinação. Já a Constituinte de que carecemos, sustentada pelas ruas cheias de povo, é aquela que – a partir de novo pacto – tenha forças para escrever uma Carta que retome as conquistas históricas de nossa gente e avance no plano da democracia. Hoje, não temos condições de garantir esse salto de qualidade.
Para nos habilitarmos à Constituinte, projeto de médio prazo, precisamos cuidar de nossas organizações partidárias, em crise exposta, e contribuir para a reorganização do movimento social, de que a Greve unitária de 28 de março foi um marco. Esses dois objetivos construirão as bases políticas necessárias à construção de uma Frente Ampla (como a que precipitou a derrota da ditadura em 1984) na qual, ao lado das esquerdas, orgânicas ou não, caibam todos aqueles que conosco estejam dispostos a resistir e derrotar o atual governo. E precisamos, por óbvio, travar a luta ideológica.
Ao lado da resistência congressual e popular, contra as ‘reformas’ da ordem do dia do Planalto, precisamos discutir com a sociedade os diversos projetos de reforma política, que podem definir as condições de disputa das eleições de 2018, que precisamos assegurar (e só a mobilização popular assegurará) em condições de justa competitividade. Essa reforma, à mercê desse Congresso e do conluio com o Planalto, jamais será aquele que fala aos interesses das massas, mas, a contar com nossa capacidade de mobilização, poderá compreender alguns avanços, como a continuidade da proibição do financiamento privado das campanhas eleitorais de par com seu barateamento, o voto em listas fechadas, e o fim da reeleição.
Ao fim e ao cabo, uma certeza: nunca foi tão importante para as forças populares a defesa da ordem constitucional democrática, agredida por um governo ilegítimo e um Congresso sem representatividade.
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