Fonte: Poder360.com.br – Rodrigo de Almeida
A unânime condenação do capitão reformado e deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) pelo Superior Tribunal de Justiça, em ação por danos morais movida pela deputada Maria do Rosário (PT-RS), é uma vitória histórica das mulheres brasileiras contra um parlamentar violento, misógino, machista, preconceituoso e racista. Mas é mais do que uma vitória delas. É também uma vitória dos gays contra um presidenciável homofóbico –“se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”; “ninguém gosta de homossexual. A gente suporta”; “o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, muda o comportamento dele” são algumas de suas pérolas odiosas distribuídas ao longo do tempo. Mas a decisão do STJ é mais do que isso. É também uma vitória da sensatez contra esse ultraconservadorismo que adota a violência verbal (e prática?) para minar quem lhe parece insuportavelmente diferente.
Antes que as gralhas gritem, é preciso dizer que o problema de Bolsonaro –líder isolado para 2018 com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora da disputa, segundo pesquisa DataPoder360 – não é tanto ser ultraconservador. Que o digam os ingleses ou nossa vã filosofia: bons conservadores são imprescindíveis às democracias e, portanto, fundamentais para o Brasil de 2017, 2018 e de sempre. Por aqui, conservador, sobretudo um conservador radical como o coronel, virou sinônimo de reacionário. É um problema corrente da esquerda, para quem, como me alertou um sábio amigo, tudo o que não é de esquerda, no fundo, é considerado “de direita”, ou “conservador”. Um equívoco de união entre alhos com bugalhos que obscurece as múltiplas facetas de compreensão da sociedade. Às vezes pode ser útil eleitoralmente, mas se revela um desastre em matéria de honestidade intelectual e política.
Resta lembrar que a origem dos conservadores vem do liberal-conservative, em inglês, uma tradição filosófica que nasce do ceticismo e não de alguma prática religiosa ou reacionária. Como definiu no século 18 um dos pais do conservadorismo, Edmund Burke: um conservador, para além do debate banal, duvida da racionalização abstrata no campo social e político e prefere a experiência e os hábitos constituídos. Aliás, não só hábitos mas uma continuidade quase inconsciente da vida – “a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram”, escreveu Burke.
Um conservador acha que herdou algo bom, seja este algo bom o sistema político, uma ordem social, uma cultura, uma tradição jurídica (ou tudo junto), e deseja conservar esse estado de coisas. Num sentido mais próximo do que, por aqui, chamamos de liberal de direita, o liberal-conservative também defende a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, o pluralismo moral, uma educação meritocrática, a emancipação feminina, Estado mínimo necessário e uma opção liberal quanto à vida moral.
O caso de Bolsonaro é mais rudimentar – e por isso mais danoso. Bolsonaro seria uma peça significativa para a melhoria do debate público sobre os caminhos da sociedade se adotasse a receita clássica do conservadorismo. Evidentemente não se pode esperar que a realidade se adeque à teoria ou ao pensamento filosófico, e sim o contrário: cabe aos intelectuais trabalhar na atualização dos conceitos. Ou na sua multiplicação. Pode ser o caso.
VIOLÊNCIA QUE ANULA O OUTRO
O problema de Bolsonaro são seus gestos e sua retórica de violência exacerbada, aquela que anula o outro, bloqueia o diálogo, impede o avanço de ideias que se contradizem ou se complementam – qualquer ideia. Seu problema não está apenas nas tomadas de posição, mas na maneira como as exprime. Seus métodos se tornaram prática corrente entre os aguerridos soldados da direita brasileira. Viu um adversário político, um opositor às suas ideias? É um imbecil, um idiota. Em se tratando de Bolsonaro e o que ele representa, não surgiram à toa as acusações de ser racista, misógino, xenófobo, homofóbico e fascista. “Se bobear, sou até gordofóbico”, segundo a galhofa-síntese que o deputado compartilhou com a repórter Consuelo Dieguez. Tais acusações, para ele, são coisa de imbecil, expressão que emprega com frequência para aqueles que ousam criticá-lo.
Seu confronto com os “imbecis”, sua negação ao mainstream político, sua retórica de ódio àqueles que representam o poder exercido dos últimos anos, sua defesa da saída pela via da bala, tudo isso arrasta multidões e, em particular, multidões de jovens céticos “com tudo o que está aí”. Jovens para quem valores como democracia são menos palpáveis e fundamentais, jovens para quem realidades como uma ditadura são um eco distante e mal acabado de relatos imprecisos, portanto questionáveis. Um assombro.
Convém lembrar que Bolsonaro prometeu que irá varrer a esquerda do mapa e prega que cada “cidadão de bem” tenha uma arma em casa para se defender: “Cartão de visita para marginal do MST é cartucho 762”. Posso estar enganado e confundir prognóstico com torcida, mas espero que não. O fato é que Bolsonaro parece ser um candidato de piso alto e teto baixo no eleitorado. Como Marine Le Pen dos franceses, que viu seu ímpeto fazer água no segundo turno contra um moderado Emmanuel Macron. Prevalecerá a percepção do vazio que se esconde por baixo de sua violência retórica e simbólica – não será preciso muito esforço para mostrar a inexistência de algum feito notável, um mínimo sequer, de quem está em seu sétimo mandato, nenhuma exuberância parlamentar de quem já acumula mais tempo no Parlamento do que no quartel.
UM SOCO NA CULTURA DO ESTUPRO
A decisão do STJ é uma vitória em favor do debate sobre a cultura do estupro no Brasil. Nunca é demais lembrar que a decisão envolve o episódio ocorrido em dezembro de 2014, quando Bolsonaro afirmou que não estupraria a deputada Maria do Rosário, “porque ela não merecia”. Fez mais: no mesmo dia postou em sua página oficial no YouTube um vídeo com o título “Bolsonaro escova Maria do Rosário”. Fez mais ainda: no dia seguinte, concedeu entrevista ao jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul da deputada, na qual reafirmou os termos: “Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria”.
É preciso torcer –e trabalhar– para que a condenação do deputado se transforme numa arma eficaz contra a realidade enfrentada pelas mulheres. Dados sugerem que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. É uma tragédia cotidiana que, mesmo quando não chega ao extremo do estupro ou da violência sexual em geral, se mostra um dissabor insuportável para as mulheres. Voltemos aos conceitos. No caso do estupro, define-se como a prática não consensual do sexo, imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Ou seja, qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração, significa estupro. Aceita esta definição, é possível garantir o reconhecimento do sofrimento feminino. Consentimento é um conceito-chave aí para demarcar as diferenças nítidas entre sexo e estupro. Sexo é consensual. Sem consentimento, passa a ser estupro. Simples e trágico assim.
Como ouvi de uma amiga, a pessoa pode estar embriagada, vestida de forma sensual, pode já ter indicado querer sexo, pode estar na e na cama e até mesmo já ter iniciado a relação sexual. No momento em que ela declara não querer sexo, ou deixa claro que deseja interromper, a ação precisa parar. Mas homens não param. E não param em coisas simples e pesadas: dos olhares de predador para uma mulher que passa na rua às conversas de grupinhos no trabalho sobre a “gostosa” que passa. Em todos os níveis sociais e faixas de renda.
Bolsonaro não sabe o que é isso, mas se trata de uma realidade inconveniente: infelizmente não são poucos os homens toscos, rudes, machistas, estimulados desde crianças a não reprimirem a sua sexualidade, muito menos frearem o exercício da força e da masculinidade. Homens que vivem seu universo particular numa sociedade ainda patriarcal que enxerga mais valor nos homens do que nas mulheres. Uma sociedade em que o masculino é visto como um direito universal e o feminino, desvalorizado. Uma sociedade em que o masculino é visto como sinônimo de força, e o feminino, de sensibilidade. (Sabemos como são interpretados os “homens sensíveis”).
Ou, como na piada supostamente ingênua e bem-humorada que ouvi de um amigo, ao nascer minha filha, um ano atrás: “Você virou um fornecedor”. Seis anos antes, quando nasceu meu filho, só ouvi prognósticos “abonadores”, sobre futebol, mulheres e carreira, incluindo até adjetivos curiosos e constrangedores, como “futuro predador”. Frases assustadoramente banais que repetem o ambiente cultural da violência real e simbólica contra a mulher. Há dois anos, uma pesquisa do DataPopular mostrou que 67% das mulheres já sofreram alguma forma de violência na universidade. Segundo a mesma pesquisa, 27% dos homens não consideram violência abusar de uma mulher se ela estiver alcoolizada.
A derrota de Bolsonaro é um suspiro de alívio, uma migalha de esperança para começar a remover as chagas da insensatez que o deputado representa. Dizem que a melhor forma de lidar com um radical que prega o ódio não é discutir os absurdos que ele diz, e sim deixá-lo falando sozinho. Dizem que, contra a estupidez, a melhor estratégia é o silêncio, pela inutilidade da disputa contra um estúpido. Não incorramos no mesmo erro do deputado condenado. Bolsonaro passou dessa fase de ser deixado falando sozinho, correndo violenta e aleatoriamente contra quem lhe parece imbecil ou menor. É um mal a combater, feito românticos como Friedrich Nietzsche no século 19 ou Albert Camus no século 20: diante do absurdo, resta-nos mal-estar e revolta.