Por Paulo Lindoso
Tutela judicial da “verdade”: uma missão impossível
Separar verdade e mentira é uma tarefa hercúlea desde sempre, mas esse problema se agravou com o advento da escrita, dos meios de comunicação de massa, da internet, e mais recentemente com as redes sociais. Se o sucesso da comunicação já é intrinsecamente improvável [1], selecionar aquilo mais próximo da “verdade”, com tantas possibilidades de comunicação tamborilando pelo sistema, vai se tornando cada vez mais uma missão impossível.
Como em regra acontece nas democracias, tais conflitos deságuam no poder judiciário, cabendo-lhe, ao final, a indagação: como fazer a tutela judicial da “verdade”, se é que isso é possível? Por um lado, há relevante argumento da necessidade de autocontenção judicial, como forma de reconhecimento da posição preferencial da liberdade de expressão, ideia que vem ganhando espaço na jurisprudência do STF [2]. Por outro, não se pode negar que a disseminação indiscriminada de desinformação pode desestabilizar as estruturas do pacto democrático, e esse é um risco que não pode ser gerenciado ingenuamente, sob pena de, ao fim e ao cabo, colocar em risco também a própria liberdade de expressão.
O outro lado da moeda e as Éguas de Diomedes: a desinformação não pode correr solta por aí
Diomedes, o rei dos bistônios, possuía quatro éguas ferozes, carnívoras e antropófagas que semeavam o terror em suas terras, cabendo então a Hércules, em seu oitavo trabalho, a tarefa de capturá-las e amansá-las (não sem algum esforço, é claro). [3] Tempos mais tarde, a psicanálise se valeu da mitologia grega para retratar, nesses “seres monstruosos, terríficos e gigantescos que assolam qualquer manifestação de vida”, a dicotomia entre a pulsão de morte e a pulsão de vida, representada pela criatividade de Hércules. [4]
Sem adentrar nas imbricações entre a psicanálise e a democracia [5], ou mesmo na caracterização do expansionismo comunicacional da modernidade como impulso de morte freudiano [6], não é demais fazer um paralelo entre as fake news e as Éguas de Diomedes.
Em ambos os casos há seres monstruosos que assolam a vida e exigem um trabalho hercúleo e criativo em combatê-los. A comparação não é exagerada, basta lembrar que há pouco tempo pessoas foram levadas a se autointoxicar com desinfetantes porque acreditaram na informação de que isso “mataria” o coronavírus. [7]
Tal como as Éguas de Diomedes, a desinformação também ameaça a vida. No entanto, aqui não há espaço para mitos: sem o heroico Hércules em cena, é o poder judiciário e a sociedade que devem envidar esforços para combater a disseminação de notícias falsas e de “fatos alternativos”. Embora não haja resposta pré-fabricada sobre como fazer isso, a certeza que temos é que as éguas selvagens da desinformação não podem correr soltas.
O requisito da “ofensa pessoal” para o reconhecimento do direito de resposta: mentiras sinceras nos interessam?
Nas eleições, a desinformação é um problema qualificado, porque ela é utilizada como instrumento de propaganda eleitoral negativa e também pode servir para descredibilizar instituições e fragilizar o processo de votação. Ainda, a desinformação eleitoral é perniciosa porque muitas vezes debates legítimos são sequestrados em favor de interesses espúrios, como recentemente alertou, em nota, a Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) [8]. E como separar o joio do trigo?
Recentemente, o TSE incluiu o artigo 9o-A na Resolução 23.610/2019, que trata da propaganda eleitoral, proibindo o “compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”. Utilizou-se, na linha do artigo 58 da Lei 9.504/1997, a expressão do fato sabidamente inverídico, e, neste ponto, a inovação normativa convida o TSE a refletir sobre a construção jurisprudencial que o próprio tribunal fez sobre esse termo e sua amplitude. Afinal, o que é sabidamente inverídico?
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o TSE possuía jurisprudência segundo a qual a afirmação sabidamente inverídica poderia ensejar o direito de resposta, sendo desnecessário que a afirmação tivesse conteúdo calunioso, difamatório ou injurioso (REspE 15.602-MG, rel. Min. Eduardo Ribeiro, sessão de 29.09.1998; MC 1.206-DF, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, sessão de 03.10.2002).
A partir de 2014, contudo, o Tribunal passou a exigir, para o direito de resposta, que o fato sabidamente inverídico implicasse ofensa pessoal ao candidato atingido. Só que isso nega vigência ao artigo 58 da Lei 9.504/1997, marcadamente por três razões: (i) o dispositivo, em sua literalidade, não traz como requisito a “ofensa pessoal” em nenhum momento; (ii) exigir que haja uma ofensa pessoal impede o direito de resposta por fato exclusivamente inverídico, ainda que não ofensivo, ignorando a conjunção disjuntiva “ou” que a redação do dispositivo traz; e (iii) isso impede que candidatos indiretamente atingidos, tal como permite a lei, possam provocar a Justiça Eleitoral. Em suma, a partir de 2014 a própria jurisprudência do TSE enfraqueceu o combate àquilo que seria sabidamente inverídico, agregando-lhe um requisito não previsto na legislação.
Isso aconteceu porque em 2014, no contexto de uma eleição presidencial agressiva, com propagandas negativas e alta polarização, o TSE concebeu duas novas linhas jurisprudenciais. A primeira, festejada por parte da comunidade eleitoralista, no sentido de que a propaganda eleitoral deveria ser propositiva; e a segunda, dispondo que, para haver direito de resposta, deveria haver uma ofensa pessoal.
Acontece que não houve debate suficiente a respeito do requisito da ofensa pessoal como pressuposto do direito de resposta. Na realidade, esse requisito surgiu de um voto vogal do ministro Luiz Fux, no bojo do julgamento da RP 1083-57.2014, atrelando o direito de resposta à calúnia, à injúria e à difamação, sem maiores considerações sobre a mudança interpretativa que se estava empreendendo — e, a rigor, sobre a “ultrapassagem” feita aos limites semânticos do texto legal. [9] Posteriormente, o julgado foi reconhecido como leading case [10], sem que se atentasse para o fato de que fora concebido num contexto muito específico, e passou a ser reproduzido por outros tribunais.
Com essa viragem jurisprudencial, o TSE passou a indicar que o combate às informações sabidamente inverídicas operaria ao som de Cazuza: só interessam as mentiras sinceras, digo, aquelas afirmações sabidamente inverídicas que trazem consigo uma ofensa a direito da personalidade. Assim, ficaram de fora as afirmações sabidamente inverídicas “despersonalizadas” como, por exemplo, aquelas que atingem instituições, e não pessoas —, o que sem dúvida alguma enfraquece o combate à desinformação.
O desafio do combate à desinformação e a necessidade de parâmetros jurisprudenciais estáveis e seguros
Como tribunal de superposição, caberia ao TSE continuar apreciando casos concretos e fixando casuisticamente as hipóteses de cabimento ou descabimento do direito de resposta (nas eleições gerais ou nos limites da recorribilidade especial). Ao contrário, optou por, de maneira irrefletida, firmar jurisprudência com tese abstrata que, em razão de seu papel, passou a ser replicada nos rincões do Brasil.
Agora, com a nova redação do artigo 9o-A, da Resolução 23.610/2019, e a necessidade de proteger a própria Justiça Eleitoral contra as afirmações sabidamente inverídicas, como haverá de se posicionar a jurisprudência do TSE?
É preciso investir numa correção de rumo, iniciada quando o Tribunal passou a reconhecer o perigo das campanhas de desinformação, e fornecer ao jurisdicionado uma jurisprudência estável e segura, mas acima de tudo coerente com a missão da Justiça Eleitoral e o caráter fortemente persuasivo dos precedentes do TSE — por mais hercúlea que seja a tarefa. Caso contrário, a inovação do artigo 9o-A terá lugar cativo num museu de grandes novidades, sem qualquer efeito prático relevante.
Referências
[1] LUHMANN, Niklas. Speaking and Silence. Trad. Kerstin Behnke. In: New German Critique, n. 61, Special Issue on Niklas Luhmann, p. 25-37. Duke University Press: Durham, 1994.
[2] FARAH, André. A posição preferencial da liberdade de expressão e o Conselho Nacional do Ministério Público. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 79, jan./mar. 2021. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/2157471/Andr%C3%A9+Farah.pdf/ – Acesso em 25 jul. 2022.
[3] RIBEIRO JR., W.A. As éguas de Diomedes. Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em: http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0037. Acesso em 25 jul. 2022.
[4] MELICIAS, Ana Belchior. Sísifo e Héracles: o trabalho do conflito pulsional. Ide (São Paulo), São Paulo, v. 40, n. 65, p. 139-156, jun. 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062018000100012&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 25 jul. 2022.
[5] DUNKER, Christian Ingo Lenz. Lacan e a democracia: clínica e crítica em tempos sombrios. – 1a ed. – São Paulo: Boitempo, 2022.
[6] HAN, Byung-Chul. Capitalismo e impulso de morte: ensaios e entrevistas. Trad. Gabriel Salvi Philipson. – 1a Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
[7] Casos de intoxicação por desinfetante crescem em NY após sugestão de Trump. VEJA, São Paulo, 20 jun. 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/casos-de-intoxicacao-por-desinfetante-crescem-em-ny-apos-sugestao-de-trump/ Acesso em 25 jul. 2022.
[8] ABRADEP. Nota da ABRADEP em defesa da legitimidade das instituições democráticas, 2022. Disponível em: https://abradep.org/midias/em-defesa-da-legitimidade-das-instituicoes-democraticas-2/ Acesso em 25 jul. 2022.
[9] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso na Representação 1083-57.2014. Recorrente: Coligação Muda Brasil. Recorrida: Coligação Com a Força do Povo. Relator: Ministro Admar Gonzaga. Brasília, 09.09.2014. Disponível em: https://inter03.tse.jus.br/sjur-pesquisa/pesquisa/actionBRSSearchServers.do?tribunal=TSE&livre=&numeroProcesso=108357 Acesso em 25 jul. 2022.
[10] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral: Temas Selecionados. Brasília, 2022. Disponível em: https://temasselecionados.tse.jus.br/temas-selecionados/direito-de-resposta-na-propaganda-eleitoral Acesso em 25 jul. 2022.