Celebra-se, nesta semana, a maior manifestação de fé católica de todo o mundo: o Círio de Nazaré, em Belém.
Você já deve ter visto as imagens: mais de um milhão de fiéis por trás da corda que protege a imagem da padroeira -a qual, vista à distância, parece singrar suavemente por sobre o mar de cabeças devotas. A eletricidade emocional que percorre a procissão, do primeiro ao último peregrino, só pode ser descrita por quem já esteve lá, independentemente de crença religiosa.
Em 1984, acompanhei meu avô Tancredo Neves ao Círio de Nazaré. À magnífica demonstração de religiosidade veio juntar-se, naquele ano, a euforia do momento político que mobilizava todo o país. O sonho da redemocratização pacífica, sem traumas, tendo à frente um líder civil com a trajetória e a envergadura de Tancredo, ia pouco a pouco se convertendo em realidade, à medida que a campanha presidencial arrebatava corações e mentes dos brasileiros.
A eleição no Colégio Eleitoral seria em 15 de janeiro. Naquele cortejo do Círio, a comoção religiosa de centenas de milhares de fiéis irmanou-se ao entusiasmo da recepção a quem, em meio ao frenesi popular, já chamavam de “o presidente da redemocratização”.
No carro, um Aero Willys conversível branco com estofamento de couro vermelho, ao lado de meu avô, agasalhados pelo afeto da multidão, perguntei a ele: “O senhor imaginaria chegar aqui com toda essa popularidade?” Ele, com comovente sinceridade e um quê de resignação, disse: “Vou gastar todo esse crédito em três meses, pode acreditar”.
E nem precisou mais dizer. Acompanhando-o no dia a dia de jornadas estafantes, eu percebia que, entre preservar a popularidade e implantar as medidas de que o Brasil carecia, Tancredo não hesitaria em trilhar o caminho espinhoso do futuro, abrindo mão dos aplausos do presente. Pelo país, ele estava disposto a pagar o preço. Convocaria a Constituinte.
Tomaria decisões amargas contra a inflação. Encaminharia as reformas que ainda hoje o Brasil aspira e merece.
Essa é a dimensão de um estadista. Naquele momento, envolvido pela fé de tantos brasileiros, aprendi uma importante lição da vida pública, que outros também conhecem. O estadista é capaz de contrariar os interesses paroquiais, miúdos; o estadista foca suas prioridades nas grandes questões nacionais; propõe e enfrenta mudanças estruturais que sacodem a inércia e a pasmaceira da administração. Nunca é refém do imediato. Não teme enfrentar incompreensões momentâneas.
Os anos passam, as oportunidades escapam, o Brasil se arrasta. Que o exemplo do Círio de Nazaré, com a robustez de suas convicções mais profundas, possa um dia incendiar nossas consciências cívicas.