Na Alemanha, o “noviço rebelde” passeia deslumbrado pelas montanhas da Floresta Negra. No Rio, refestelados no sofá do apartamento do Largo dos Leões, Farah e Weber parecem posar para um quadro de Picasso. No Xingu, índios de diferentes etnias se comunicam em uma variedade própria do português. No Espírito Santo, a Pomerisch Radio faz transmissões em pomerano, língua oficial de Santa Maria de Jetibá. Esses são alguns dos lugares de memória de Charlotte Emmerich, linguista do Museu Nacional-UFRJ, cuja missa de 7º dia se celebrou no sábado (24).
Nascida em Viçosa, Minas Gerais (1938), Charlotte viveu a primeira infância na Alemanha, de onde retornou em 1949. Dedicou a vida à pesquisa das línguas minorizadas. Faleceu domingo (18) no Rio, deixando-nos valiosa herança. Sua tese de doutorado – A língua de contato no Alto Xingu: origem, forma e função – foi precedida pelo mestrado sobre o idioma Txikão e por estudos da língua pomerana trazida ao Espírito Santo por camponeses luteranos que migraram no séc. XIX de uma região do Mar Báltico. Eram os “pomeríndios”, dizia brincando, por se tratar de língua oral, só agora dotada de escrita, fruto do trabalho do linguista Ismael Tressmann.
Foi através da Charlotte, em 1992, que ouvi falar pela primeira vez dos “pomeríndios” e do português do Xingu, durante o projeto do Guia de Fontes da História Indígena e do Indigenismo. Ela orientou minha entrada no Arquivo do Museu Nacional, especialmente na coleção que lhe era familiar desde que coordenou equipe técnica da edição pelo IBGE (1981) do Mapa-Etno-histórico de Curt Nimuendaju, o maior documento etnográfico brasileiro, responsável pelo registro de 1.400 grupos indígenas em mais de 500 rios, com 41 cores e tons para indicar as famílias linguísticas
Floresta Negra
Daí nasceu nossa amizade construída com trocas de figurinhas. Juntos, demos consultoria ao professor da ECO-UFRJ, Luiz Fernando Perazzo, no filme de animação do mapa etno-histórico. Numa das reuniões de trabalho, comuniquei que iria participar de um Colóquio Internacional em Freiburg. Charlote me pediu, então, para levar uma mala de livros que o padre Joseph, seu amigo, deixara no Rio ao ser transferido para a Alemanha. Levei e ganhei um passeio pela Floresta Negra. No domingo, bem cedo, o padre, grato, passou pelo hotel em seu carro:
– Vamos imaginar que a Charlotte está aqui e que vai conosco.
Era final da primavera. O carro serpenteava por estrada sinuosa entre a penumbra das árvores. A paisagem deslumbrante de colinas verdes me fez voar até as montanhas da Baviera, onde o barão von Trapp havia cantado Edelweiss. Senti-me o “noviço rebelde de igarapé”. Várias casas da família Emmerich nos receberam, sempre com farta mesa: queijos, vinhos, cerveja, diversos tipos de pão fresco com gosto de trigo, presuntos com pernil de porco bem temperado, salsichas grelhadas e o indefectível “Bolo Floresta Negra” de chocolate umedecido com kirsch, recheado com chantilly e coberto com cerejas e raspas de chocolate.
De vilarejo em vilarejo, foram cinco refeições em um só dia, foi aí que entendi porque Charlotte apreciava uma boa mesa. Café da manhã aqui, merendinha ali. Minha ancestral fome nordestina encarou no almoço um joelho de porco dourado e crocante com chucrute e batata. Dois quilos depois, já de noite, o padre Joseph depositava este filho do bairro de Aparecida no hotel, levando consigo a virtual Charlotte a quem, de volta ao Rio, apresentei relatório circunstanciado, contando haver comido por mim e por ela. Testemunharam Farah e Weber poltroneados no sofá da sala.
Femme au chien
O xodó de Charlotte era Weber, já Farah era a preferida de Margarete, doutora em Botânica. Eram dois galgos mimados de cabelos longos e sedosos, muitos travessos, abriam gavetas, retiravam roupas e as deixavam espalhadas no chão. Alexandre, o filho da linguista Conceição Paiva que ainda engatinhava, disputava a comida da Farah. Mas a imagem que me ficou na memória foi a de placidez de ambos como na tela “Femme au chien” de Picasso. Morreram. De velhice. O luto durou até a chegada de Charles, com quem não convivi, ele foi retratado pela museóloga Helena Cardoso, que morou com as irmãs de quem era muito amiga.
Charles era um morador de rua vagabundo, esquálido e pulguento. As duas irmãs o encontraram, assustado, vagando na Quinta da Boa Vista. Adotado por elas, foi levado a um SPA canino, onde entrou moreno e saiu branquinho, o pelo marron era mesmo sujeira. Enobrecido e empoderado, o príncipe Charles Emmerich arreganhava os dentes quando alguém se aproximava de suas benfeitoras. “Até eu tinha que negociar com ele minha aproximação” – conta Helena, detalhando episódio que presenciou:
– Ele adorava se mostrar e exibir sua valentia. Uma vez em que passeavam na rua, Charles se desvencilhou da coleira e partiu pra cima do cachorrinho da embaixatriz de um país europeu. Charlotte o repreendeu, assumiu as despesas hospitalares da vítima e se solidarizou com a embaixatriz, de quem se tornou amiga. Charlotte tinha isso, era conciliadora e conseguia acolher as pessoas de um jeito único.
A morte de Charles, vítima de um câncer brabo, deixou as duas irmãs inconsoláveis:
– Nunca mais quero ter cachorro em casa – jurou Charlotte. A irmã mais velha, já doente e cansada, também não aguentava mais cuidar dos bichinhos.
O sabor da vida
A casa ficou triste. Um dia Helena desceu ao Largo dos Leões e viu em frente ao edifício uma feira de animais. Telefonou:
– Charlotte, não desça, não saia do apartamento, aqui embaixo tem uns cachorrinhos lindos para adoção e você não vai resistir.
– Não podemos ter mais cachorro! Não vou sair! – disse Charlotte ainda de luto. Desligou o telefone, mas como era previsível, mordeu a isca e desceu correndinho. Encantada com um par de cadelas tristes e doentes que ninguém queria adotar, decidiu levar as duas para casa. O veterinário, no entanto, recomendou que buscasse um lar para uma delas. Foi uma escolha de Sofia. Ficou com a mais doente – a Kate, que por ter sido maltratada, capengava das patas, tinha medo de tudo e se escondia das pessoas. Conta Helena:
– Charlotte, sempre solidária com o sofrimento de qualquer ser vivo – gente, bicho ou planta – contratou um personal trainer para realizar exercícios diários que fizeram Kate se erguer e andar. Acompanhei de perto sua transformação. Ela virou uma princesa, ficou dona de si e passou a latir com alegria. Charlotte era assim mesmo, incentivava os que com ela conviviam a descobrirem a sua força, o seu potencial: índios, “pomeríndios”, alunos, funcionários, porteiros de edifício, animais, plantas.
O seu relacionamento com os cachorros é uma metáfora do vínculo afetivo mantido com os desvalidos, os discriminados, os “fracos que humildemente vêm atrás como na vida”. Ela era uma “ficante”, fiel aliada .
Existem várias categorias no relacionamento com as línguas indígenas: os falantes, os lembrantes, os buscantes e os ficantes, esses últimos são os enamorados das línguas com as quais mantem relação amorosa por toda a vida. Essa era a Charlotte, que até os últimos dias, no hospital, tinhas planos de escrever e de organizar seu arquivo pessoal para entregá-lo ao Museu Nacional.
Nas visitas que lhe fazia, Helena levava vinho, drambuie – o licor de uísque que a enferma gostava tanto, além de guloseimas. Talvez ela pensasse no “bolo floresta negra”, enquanto folheava as páginas do último livro que leu e que ficou na mesa de cabeceira: “A morte é um dia que vale a pena viver” escrito pela médica Ana Cláudia Arantes. Lá, a autora propõe repensar a existência e oferecer às pessoas a oportunidade de viverem bem até o dia da partida.
Foi esse o legado amoroso construído por Charlotte, filha de Júlia e Guilherme, irmã de Margarete e Walter, aliada fiel dos povos indígenas, comprometida com a educação bilíngue e a luta por seus direitos. Ela fruiu o sabor da vida. Com seus familiares, seus cães, seus amigos, seus colegas, seus alunos. Com os índios, com os “pomeríndios” e com ela mesma.
P. S. Homenagens vêm sendo prestadas em vida à Charlote desde 2018. Agora, por seu falecimento, várias instituições se pronunciaram com notas de pesar: Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), Programa de Estudos do Uso da Linguagem (PEUL-UFRJ), Comissão de Línguas Ameaçadas (CLAme), Museu Nacional, assim como pesquisadores, entre os quais as linguistas Marília Facó, Conceição Paiva, Beatriz Protti e os museólogos José Carlos Levinho e Yone Couto. Agradeço as informações e as fotos cedidas por Helena Cardoso e por Marita, lá da Floresta Negra.