Ê ê, ê á, Não faz marola pra canoa não virar (Marcha A.Almeida-Batista-1958)
Era la piragua de Guillermo Cubillos. (Cumbia José.Barros-Carlos Vives-1967)
Exmo. Sr. Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez
Compañero Ricardón,
Aproveito o carnaval, quando o mundo pode ser lido às avessas, para te escrever. Permíteme que te tutee. Afinal, somos colegas. Você deu aulas nas duas universidades em que trabalho desde 1987. A UERJ nos une, a UNIRIO nos reúne. Durante alguns anos, compartilhamos os mesmos espaços físicos. A gente deve ter se cruzado por aí em algum corredor. Por isso, cara, a tua cara não me é estranha.
É na qualidade de colega que me surpreende tua recomendação a diretores de escolas para que filmem alunos perfilados cantando o hino nacional, com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Que ideia genial e original! Ela abre caminho para outras técnicas pedagógicas igualmente audaciosas como a palmatória, a sabatina, o joelho no milho, o chapéu de burro, o quartinho escuro e a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC) da qual você foi professor.
Escola com partido
Dizem as más línguas que você, Ricardón, entrou na Uerj por uma janela verde-oliva, em 1985, a convite do então coordenador da Pós-Graduação em Estudo de Problemas Brasileiros (EPB), general João Bina Machado, para formar professores de EMC, EPB e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), disciplinas criadas em 1969 pela ditadura militar e tornadas obrigatórias no sistema de ensino. O seu lema era “Deus, Pátria, Família”.
O objetivo de tais disciplinas era fazer lavagem cerebral, ameaçando os alunos com o fantasma do comunismo, amestrando-os para apoiarem o regime militar, que suprimiu as liberdades democráticas, censurou, prendeu, torturou e matou. Tudo isso apoiado na doutrina de Segurança Nacional. Era a escola com partido. Depois que a ditadura caiu do galho e deu dois suspiros, me desculpa, mas votei no conselho Universitário, em 1988, pela extinção do Mestrado na gestão do reitor Ivo Barbieri. A última dissertação – ufa! – foi defendida em 1993, mas antes disso, Ricardón, te deram o bilhete azul.
Você registra no teu currículo Lattes ter sido, no mesmo período, professor na UNIRIO, havendo colaborado com a organização da Pós-Graduação em Memória Social, justamente o programa ao qual estou vinculado. Uma ata da décima reunião do Colegiado (13/02/1989) do então Mestrado em Administração de Centros Culturais registra sua única, mas valiosa contribuição: “Ricardo Vélez Rodriguez lembrou da possibilidade de se obter apoio da Unesco e da OEA para um programa de professores visitantes”.
Agora, Ricardón, você traz essa experiência para o Ministério da Educação, uma vitrine do nosso país, numa área que já projetou internacionalmente educadores como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, entre outros, que pregavam a educação para a liberdade e o incentivo ao senso crítico. Uma recente entrevista à revista Veja também repercutiu mundo afora. Lá, talvez generalizando o comportamento de colegas de ministério, cinco dos quais respondem a ações na Justiça, você afirma:
– “O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisa dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião, acha que pode sair de casa e carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola”.
A paudagogia
A escola, efetivamente, pode ensinar o brasileirinho a não pecar contra o sétimo e o décimo mandamentos. O aluno que canta, perfilado, o Hino Nacional, diante da bandeira do Brasil, não tem tempo sequer para tomar conhecimento dos maus exemplos do Flávio Bolsonaro e do Queiroz que cobiçam as coisas alheias.
No entanto, essa proposta programática do MEC, bombardeada pela oposição, infelizmente sofreu alterações. Você recuou e, num primeiro momento, suprimiu o slogan, dando a impressão de que aceita que o Brasil não está acima de tudo, nem Deus acima de todos. No segundo recuo você admitiu que a filmagem dos alunos cantando o Hino Nacional tem de ser previamente autorizada pelos pais como manda a lei. A proposta ficou descaracterizada, justamente no momento em que essa cruzada moralista estava tomando embalo. Como disse Michel Temer “é preciso manter isso, viu?”.
A melhor defesa é o ataque, colega Ricardón. Respaldado pela filosofia colonial de que “la letra con sangre entra”, o próximo passo é recomendar aos diretores de escola a volta da palmatória, aquela redonda, de madeira, com vários furos que aumentam a velocidade do golpe e a dor. Embora considerado crime na maioria dos países, seu uso nos Estados Unidos conta com o apoio de Trump. O senador Vernon Asbill justifica que a punição mantém os alunos na linha, pois o castigo físico “ajuda a construir o caráter dos alunos e contribui para que tenham notas mais altas”.
Existe melhor modelo do que os Estados Unidos? Segundo dados do Departamento de Educação Federal em dois anos 223.190 crianças foram alvo de punição corporal nas escolas, algumas delas, revoltadas, de quando em quando disparam tiros contra colegas e professores, mas como disse seu chefe máximo, sempre há efeitos colaterais, vitimando inocentes.
Santa Luzia
De qualquer forma, se retoma a “paudagogia” a qual foram submetidos os índios em todo o continente e da qual somos herdeiros. Originalmente, os índios educavam sem castigar, mas depois aprenderam que existe a porrada afetiva como testemunha no séc. XVIII o padre Parras:
– “(Os índios) internalizaram tão profundamente a ideia de que o castigo é um sinal de amor, que de vez em quando um índio vinha reclamar ao padre porque não era castigado, pois era um sinal de que não era amado. Então, o padre mandava dar-lhe 25 chicotadas, aplicadas sempre publicamente, no meio da praça”.
O missionário Anton Sepp, na mesma época, empregava uma metodologia que terceirizava o espancamento:
– “É preciso instigar os índios com palavras e até com o chicote; um índio chicoteia o outro por ordem do missionário, como faz o professor com o aluno, de tal sorte que a pessoa castigada jamais se queixa nem dá o menor sinal de impaciência; ao contrário, depois de receberem os açoites, procuram o padre, beijam a sua mão e dizem: ‘Senhor Padre, aguyó beté yebis, que quer dizer: agradeço mil vezes as chicotadas que me corrigiram e me fizeram aprender a ter juízo”.
Colega Ricardón, na escolinha do bairro de Aparecida, em Manaus, na minha infância, nunca beijei a mão da professora Lourdes Normando. Ela me obrigou a ajoelhar no milho e me deu muitos bolos com a Santa Luzia – esse era o nome da palmatória destinada a abrir os nossos olhos. Nas sabatinas organizadas toda sexta-feira, dona Lourdes, usando a técnica do padre Sepp, fazia um círculo com os alunos e perguntava:
– Oito vezes cinco, menos dez, dividido por dois, mais sete?
Se o aluno errava ou demorava, ela passava a pergunta para o seguinte, para o outro e para o outro, até que alguém acertava e era obrigado a dar bolos em todos os colegas que erraram ou não responderam. Um dia, errei e quem acertou foi Geraldão, o meu melhor amigo. Solidário, pegou leve e por isso levou vários bolos da dona Lourdes “para não trapacear” – disse ela.
Tá certo, da tabuada só sei metade da missa. Parece que tal método não forma cientistas nem cidadãos, mas indivíduos obedientes e dóceis – dizem os críticos como seu conterrâneo Rodolfo Llinás, que é neurocientista:
– El problema es que no nos enseñan a hacer preguntas, nos enseñan a dar respuestas a preguntas tontas.
A ciência nasce da ruptura de parâmetros, o que pode ser interpretado por certos setores como indisciplina. Há quem diga que sua canoa é furada, colega Ricardón, e que pode naufragar com a marola, quando é melhor navegar na piragua de Guillermo Cubillos que “ïmpasible desafia la tormenta”.
Siga sua própria receita, Ricardón. Sugiro que para dar bom exemplo o próprio ministro seja filmado cantando o “hino nacional brassilenho” com seu delicioso sotaque cachaco bogotano e depois envie às escolas. Os alunos vão adorar.