Fazer caridade com o chapéu dos outros é prática constante da União e dos Estados em relação aos municípios. Eles dão o que é dos outros, no caso, dos municípios.
Aqui mesmo temos bons exemplos. A política de restituição de ICMS do Governo do Estado e os Fundos da UEA, das Micro e Pequenas Empresas e do Desenvolvimento do Interior e Turismo são alguns deles. No primeiro momento, o Governo do Estado dá o que é dos municípios, os sufoca em termos de recursos para transformar os prefeitos em pedintes e depois aparece como o “bonzinho” que faz convênios para repassar recursos àqueles que lhe são dóceis, tentando esmagar os que não seguem a cartilha do governante de plantão. Isso vem de longe, não é de hoje.
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal, no entanto, abriu caminho para o fim dessa prática que agride a Constituição e confronta com a Federação. O relator foi o Ministro Ricardo Lewandowski e o seu voto foi aprovado por unanimidade.
Saiba mais lendo notícia na íntegra publicada no CONSULTOR JURÍDICO (abaixo) e a íntegra da decisão do STF (clique aqui).
Chapéu alheio
Municípios vão à Justiça contra isenções fiscais
Por Alessandro Cristo
Os municípios decidiram parar de reclamar das desonerações feitas pelo governo federal e partir literalmente para a briga. A Justiça tem sido chamada a intervir contra a queda nas receitas das prefeituras com a diminuição do repasse ao Fundo de Participação dos Municípios. As administrações municipais correm aos tribunais estimuladas por uma decisão dada no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal, que proibiu o estado de Santa Catarina de fazer incentivos fiscais com o ICMS porque parte do imposto arrecadado pertence aos municípios.
O Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é alimentado pela arrecadação, feita pelo governo federal, do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados, inconstantes devido aos freqüentes ajustes nas faixas de isenção de renda de pessoas físicas e à política de desonerações na produção industrial como forma de estímulo à economia.
A iniciativa de brigar contra a redução do repasse do fundo já prolifera no Nordeste, desde que o tributarista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Fernando Scaff começou a defender a idéia em congressos e cursos ministrados a procuradores fazendários. Dezenas de prefeituras já entraram com ações pedindo o ressarcimento de valores não recolhidos por causa de incentivos fiscais. O fundamento foi a decisão em que o STF colocou o princípio federativo acima da liberdade dos entes arrecadantes.
No caso concreto, julgado em junho do ano passado, os ministros consideraram inconstitucional um programa catarinense que permitia aos empresários adiar o pagamento do ICMS, como forma de estimular a atividade econômica durante a crise. Para a corte, o estado só poderia conceder o benefício em relação à parte do imposto que fica efetivamente nos cofres estaduais, ou seja, 75%. Como os 25% restantes são das prefeituras, como prevê o artigo 158, inciso IV, da Constituição Federal, o município de Timbó, que contestou o benefício fiscal, deveria receber sua parte na data normal e não quando o dinheiro chegasse às mãos da Fazenda estadual.
A Procuradoria-Geral de Santa Catarina protestou, dizendo que os municípios só têm direito aos valores quando o ICMS “deixar de existir como tributo e passar a existir como receita pública, ou seja, quando for arrecadado”, mas o Plenário do STF considerou que o fato gerador já havia acontecido, o que criara o direito de o município receber sua parte.
A tese do STF chamou a atenção do tributarista Fernando Scaff, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados. Desde fevereiro, ele anuncia uma reação em cadeia decorrente da decisão. Segundo ele, o acórdão abre espaço para ações questionando a desoneração de IPI feita entre janeiro e setembro deste ano pelo governo federal para estimular vendas de automóveis e eletrodomésticos. “Pela interpretação da decisão do STF, os entes federativos menores estão legitimados a buscar o Poder Judiciário para que a União deposite os valores não repassados”, diz. Os incentivos, segundo o advogado, causam “redução da arrecadação de IPI e, assim, redução dos valores repassados pela União ao FPM e ao FPE” e, por isso, “dispõem indevidamente de parcela que não pertence à União”.
Foi o que alegaram os municípios de Satuba e Pariconha, em Alagoas, à Justiça Federal. Ambos conseguiram manter liminares no Tribunal Regional Federal da 5ª Região para suspender os descontos feitos pela União no IR e no IPI, pelo menos em relação à parcela destinada, via FPM, aos reclamantes. Pela Constituição, 48% do que é arrecadado com esses tributos devem ser repassados aos fundos municipal e estadual. A parcela dos municípios é de 22,5% da arrecadação, mais 1% extra em dezembro. A regra está no artigo 159, inciso I, da Constituição Federal. Nos fundos, 84% das verbas vêm do IR e 16% do IPI.
No caso de Satuba, a decisão, publicada em julho, ainda não foi cumprida. O desembargador federal Vladimir Souza Carvalho, relator, já oficiou o juiz da causa no fim de agosto, pedindo informações sobre o porquê da demora da Fazenda Nacional em obedecer.
O descumprimento das ordens pelo Tesouro Nacional é o principal entrave para as ações, segundo o advogado Jonas de Moura Neto, do escritório Moura & Carriço Advogados, que já conseguiu 33 decisões favoráveis na Justiça Federal nordestina, das 64 ações ajuizadas com a tese. “Já pedimos a prisão e o desconto das multas nos vencimentos dos secretários da Receita Federal e do Tesouro Nacional, pela obstrução ao cumprimento das decisões”, protesta.
Das vitórias do advogado sobre a matéria, cinco são de mérito, em primeiro grau. Ele afirma ter outros 80 contratos de defesa judicial prontos para serem firmados com prefeituras, que esperam apenas a primeira liberação de valores pelo fisco federal. Assim que o Tesouro repassar as verbas, as novas ações entrarão na Justiça. Moura Neto conta 243 prefeituras como clientes.
Reação em cadeia
A avalanche de ações na Justiça Federal nordestina começou em março, quando Moura Neto patrocinou o primeiro processo, em favor do município pernambucano de Araçoiaba. O juiz Hélio Sílvio Ourem Campos, da 6ª Vara Federal de Pernambuco, concedeu tutela de urgência ao município, considerando que os benefícios fiscais acumulados foram uma interferência da União na autonomia federativa da prefeitura. “A autonomia política dos entes federados pressupõe a rigorosa preservação de sua autonomia financeira, não se permitindo, no tocante à repartição de receitas tributárias na forma estabelecida pela Constituição, qualquer condicionamento arbitrário por parte do ente responsável pelos repasses das verbas tributárias”, disse na decisão.
Como esperado, o juiz citou o acórdão do Supremo Tribunal Federal de junho do ano passado em favor do município de Timbó contra a Secretaria de Fazenda catarinense. “O repasse da quota constitucionalmente devida aos municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual. Limitação que configura indevida interferência do estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias”, diz o acórdão relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski, que teve votação unânime do Plenário no ano passado. O ministro chegou a dizer que o estado fazia “cortesia com chapéu alheio”.
A decisão do Supremo também foi citada pelo juiz Carlos Wagner Dias Ferreira, da 1ª Vara Federal do Rio Grande do Norte. “A tese defendida pelo autor merece ser acolhida, posto que encontra abrigo no precedente do Supremo Tribunal Federal que enfrentou o caso do programa de incentivo fiscal de Santa Catarina relativo ao ICMS”, afirmou Ferreira em sentença favorável à prefeitura de São Gonçalo do Amarante (RN). “A corte suprema entendeu, em votação unânime, que o repasse da quota constitucionalmente devida aos municípios, por força da repartição de receitas tributárias, não pode sujeitar-se às concessões de benefícios, incentivos e isenções fiscais efetuadas pelo o respectivo estado-membro da federação”, justificou o juiz.
“Pelo princípio da máxima efetividade, interdita-se à União qualquer amesquinhamento dos recursos constitucionalmente destinados aos municípios”, disse o juiz Fernando Escrivani Stefaniu, da 2ª Vara Federal de Sergipe, que também se alinhou ao entendimento. Em agosto, ele concedeu ao município de Poço Verde (SE) o direito de receber os valores referentes aos benefícios concedidos pela Receita Federal nos últimos cinco anos. A jurisprudência citada na sentença também foi a decisão do Supremo.
A discussão já foi levada pela Procuradoria da Fazenda Nacional ao TRF-5, que então suspendeu a liminar concedida a Araçoiaba. A decisão foi dada pelo presidente da corte, desembargador Luiz Alberto Gurgel de Faria, e abrangeu também as ações movidas pelos municípios alagoanos de Pão de Açúcar, Porto Calvo e Atalaia, com base no dispositivo de suspensão de segurança – procedimento que paralisa todas as decisões até que os casos sejam julgados no mérito. Ele considerou que a Constituição, ao ordenar o repasse do produto da arrecadação do IPI e do IRPF ao fundo municipal, se refere à receita líquida e não ao valor bruto. Ou seja, os beneficiários só têm direito ao que efetivamente entra no cofre da União.
No TRF-5, a Fazenda argumentou que decisão favorável ao município de Araçoiaba provocaria efeito em cadeia, já que o Tesouro Nacional não calcula o impacto das reduções proporcionalmente a cada ente beneficiário do fundo, mas de maneira conjunta. O argumento foi o de “grave lesão à economia pública”. Apesar disso, cinco liminares ainda estão válidas por terem sido expedidas já no tribunal, segundo Moura Neto. As favorecidas são as cidades alagoanas de Satuba, Pariconha e Junqueiro, a sergipana Itabi e a pernambucana Aliança.
Perdas acumuladas
As ações, no entanto, não questionam a redução das alíquotas de IPI determinadas pelo governo federal no início do ano em favor das fabricantes de automóvel e das indústrias de eletrodomésticos da chamada “linha branca”, como explica Moura Neto. “A União tem a previsão constitucional de redução de alíquotas, mas o que combatemos são os incentivos fiscais como os concedidos aos produtos feitos na Zona Franca de Manaus, que têm isenção total do IPI até 2023, e aos produtos de informática, que têm redução de 95% do imposto até 2014”, diz. Segundo ele, esses incentivos são renúncia de receita, “o que a União só pode fazer em relação ao que lhe pertence”. Para serem legais, entende o advogado, as reduções deveriam ter caráter geral.
De acordo com cálculos da Receita Federal, os benefícios fiscais de IPI para vendas nacionais em 2009 terão um impacto de R$ 17 bilhões, dos quais só a isenção da Zona Franca será responsável por R$ 10,56 bilhões – clique aqui para ver o relatório sobre o IPI. No Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas, a renúncia chegará a R$ 24,8 bilhões – clique aqui para ver o relatório do IRPJ. Os municípios querem que esses valores entrem na conta dos repasses ao FPM. Eles têm direito a 23,5% do total.
Desde o início do ano, as desonerações feitas pelo governo federal no IPI reduziram os repasses ao fundo em 7,6%, em comparação com 2008, segundo o Tesouro Nacional. Nos primeiros oito meses do ano passado, o município de Satuba, por exemplo, recebeu do FPM R$ 4,2 milhões. Este ano, foram R$ 3,9 milhões no mesmo período. Em Pariconha, de R$ 3,4 milhões no ano passado, o repasse caiu neste ano para R$ 3,1 milhões, de janeiro a agosto. Segundo Moura Neto, há meses em que a diferença chega a 30%, o que compromete o cumprimento de obrigações assumidas pelos prefeitos.
Segundo levantamento feito pelo Instituto Pernambucano de Estudos Tributários, só com a redução do IPI incidente sobre automóveis a Receita Federal apura ter perdido R$ 3 bilhões, quase um terço das perdas fiscais desde o início da crise econômica. A comparação é dos primeiros oito meses do ano com o mesmo período no ano passado. Em 2008, o total arrecadado de janeiro a agosto foi de R$ 4 bilhões. Neste ano, o valor foi de R$ 1 bilhão. A queda foi de 74,5%, a maior entre os tributos. Para se ter uma ideia, a perda de arrecadação total do fisco federal no período, incluindo a Previdência, foi de apenas 2,6%, o equivalente a R$ 11,4 bilhões.
Mesmo prefeituras de cidades onde a atividade econômica gera boa parte das receitas municipais não hesitaram em entrar com ações pedindo de volta tudo o que o governo federal deixou de arrecadar nos últimos cinco anos devido a incentivos fiscais. É o caso de Caruaru e Garanhuns, em Pernambuco, e de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte. Além das receitas com ISS e IPTU, São Gonçalo conta também com royalties da exploração de petróleo.
Mistura de estações
Usar a decisão do Supremo como parâmetro para contestar desonerações, no entanto, pode dar em lugar nenhum. A opinião é do procurador-chefe da Procuradoria Fiscal de Santa Catarina, Luiz Dagoberto Correa Brião. Segundo ele, a questão julgada no ano passado não se referia a redução de valores, mas ao prazo de recolhimento e de repasse aos municípios. “O programa de incentivo não muda a alíquota, só adia o recebimento.”
A mesma opinião defende o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel. Para ele, o caso de Santa Catarina é diferente do que acontece com o IPI. Não houve redução de alíquota, mas diferimento no recolhimento. Por isso, juridicamente, o dinheiro já existia e não podia ser negado aos municípios. “O fato gerador já tinha ocorrido à luz da alíquota”, explica. Por isso, não se pode fazer analogia com as desonerações do IPI, segundo ele. “É uma fantasia. Sequer é errado”, afirma, citando expressão conhecida do físico alemão Max Planck.
Apesar disso, o procurador-chefe catarinenese reconhece que o acórdão da corte foi um divisor de águas. “Até então se entendia que o estado, antes de receber, poderia fazer o que quisesse com a arrecadação, por ser de sua competência. Agora, o STF, com base no princípio do federalismo, entendeu que o direito existe antes mesmo de o dinheiro entrar no caixa”, afirma o procurador, que conta estar em negociação com os municípios do estado para pagar parceladamente os 25% do ICMS proibidos pelo Supremo de serem postergados. “A partir de janeiro tudo vai estar funcionando perfeitamente.”
Isso não quer dizer, de acordo com Brião, que o IPI possa ser comparado ao ICMS. “O IPI tem função extrafiscal de regulação do mercado, e não arrecadatória. O imposto sequer entra na Lei de Responsabilidade Fiscal”, lembra. O mesmo pensamento tem Maciel. “Por ter natureza regulatória, o IPI se opera por alíquotas. Se subir, os municípios recebem mais também”, diz. “Não é necessário sequer uma lei para a concessão de benefícios. O IPI varia conforme o crescimento ou a diminuição do consumo”, explica a presidente do Instituto Pernambucano de Estudos Tributários, Mary Elbe Gomes Queiroz.
Autor da ação que gerou a decisão emblemática do Supremo em favor de Timbó, o advogado Carlos Eduardo Serpa vê com reservas o uso do acórdão como base para contestar isenções. “No caso dos municípios catarinenses, houve apropriação indébita do governo do estado de receita constitucionalmente garantida aos municípios, enquanto que, no caso da redução do IPI, o governo federal reduziu o repasse aos municípios porquanto houve redução da alíquota do imposto”, contrapõe. Porém, segundo ele, as perdas de prefeituras que dependem dos repasses para funcionar podem ser questionadas pela Justiça.
O resultado de uma interpretação radical da decisão do Supremo e de seu uso contra isenções federais seria uma confusão de alíquotas, segundo a professora do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, Fabiana Tomé. Ela cita como exemplo o direito que as autarquias estaduais e municipais têm de ficar com o IR retido de salários pagos a seus funcionários. Como a mudança nas faixas de isenção do IR é definida pelo governo federal, “se a tese for levada às últimas consequências, municípios e estados poderão reter e ficar com o que acharem de direito. Isso inviabilizaria o próprio instituto da isenção.”
Solução negociada
A atitude dos municípios nordestinos, no entanto, ainda é isolada. De acordo com os presidentes da Confederação Nacional de Municípios, Paulo Ziukoski, e da Associação Brasileira de Municípios, José do Carmos Garcia, o assunto já foi comentado por alguns representantes, mas nenhuma medida prática conjunta foi arquitetada. Ziukoski lembra que o governo federal já vem adotando medidas para compensar as perdas dos municípios em 2009. Repasses adicionais em março e setembro somaram R$ 1 bilhão e devem ser regulamentados com a aprovação da lei de conversão da Medida Provisória 462/09, editada em maio e que aguarda sanção presidencial. “É uma ajuda financeira a fundo perdido”, diz.
A Confederação, no entanto, considera a via judicial. Segundo nota da entidade enviada por sua Assessoria de Imprensa para a revista Consultor Jurídico, a onda de decisões dadas em favor dos municípios no nordeste contra os benefícios concedidos pela Receita Federal “pode pôr fim aos atos ilegais do governo federal, ou pelo menos inibir que procedimentos desta natureza sejam reduzidos significadamente”.
O reforço de caixa vindo da União também manteve o estado do Maranhão longe da briga. Dependente das verbas do Fundo de Participação dos Estados em 55% de seu orçamento, o governo maranhense sentiu a queda de até 15% nos repasses de 2009 em relação ao ano anterior. Uma linha de crédito de R$ 280 bilhões aberta pela União via BNDES, no entanto, pode reduzir o impacto, segundo o procurador-geral do estado, Marcos Coutinho Lobo. Segundo ele, o estado não deve interferir nas decisões arrecadatórias do fisco federal, assim como os municípios não podem contestar benefícios fiscais estaduais. “Senão, teríamos que reunir todos os municípios sempre que precisássemos fazer incentivos fiscais.”